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Raios partam a vida e quem lá ande - Edhson J. Brandão

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Ilustração; Altamash Urooj


Vida é velha aos respirantes e lerda como a angustiante penitência dos sóbrios. Sorte de quem desocupa seus leitos e faz da pele sua casa eterna, Monique.
Uma cinta de madeira e milhares de milhares de decompositores no mosaico de meus ossos é a receita de felicidade mais saliente que eu consigo pensar, Conceição, nestes meus instantes cabos.
Língua já sente o gosto dos sete palmos (são os beijos que a viuvez oferta?).
E pelo que me contento se não com a plenitude do corpo cansado que carrego entre estes mundos e fungos cujos meus olhos já não se exaustam mais? Meu corpo é nada se não poeiras de uma crônica de mau gosto que o tempo edificou.Poético, não, Conceição? Esta você anotaria em seu relicário de papel?
Ando pensando em você, Monique. Miles Davis causa amnésia e Cruz e Sousa acalanta. Tenho tido razoáveis noites com estes dois. Eis a minha pederastia. Quando ouviria isto deste aqui? Vestígio de vetustez. Procura em mim e encontre sobre sangue quente e ralo o grande marinheiro que já fui. Há ainda sal dos cais entre meus dedos.
Que Conceição não se entristeça! Há traços da memória que só te resta permitir. Não fique brava. Sua conversa é com os anjos. Diga-me quantos você já conheceu! Qualquer um destes pestes é mais gentil do que eu, se convença.
Eu, aqui, descasco os meus segundos com a mesma promessa feita a vocês quando nasceram: vamos morrer. Myman’sgonenow... Ain’t no use a listenin’.
“Senhor F., hora de ir.”
A vaca da enfermeira sempre interrompe nos momentos de altiva lucidez. Não me caso mais.
“Temos horários”.
Obedecem mais ao relógio que não fala a própria Constituição!
“Por gentileza”.
Monique, Conceição. Vocês continuam divinas nestas lápides. É incrível como o mármore e o granito ressaltam os olhos e a tez de vocês. “Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de/ dizer aos meus amigos aí de Londres...” Lembram-se? Deve ser meu epitáfio! Dois amores caberão em três túmulos?
“Eu o ajudo com a cadeira”.
Encomendei lírios e crisântemos. Há um verso que eu preciso declamar.
“Vamos”.
É sempre assim: no melhor da foda, a gente para e vai embora.
Empurre esta cadeira.




Edhson J. Brandão, 1989, escreve epitáfios para os suicidas desistidos. Além de sobrevivente de dois apocalipses, sobre seu nome há  Letra de mão e mais algumas historietas escolares (Giostri, 2016) e a Revista Semeadura. Qualquer semelhança com a vida real é pura inconsciência.

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