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"ALGUMAS LEITURAS #02", POR ANDRÉ LUIZ PINTO

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POR UMA OUTRA LEITURA


Da Rocha


Um gozo interrompido... foi a sensação que eu tive ao final do último capítulo, sensação de que havia deixado alguma coisa para trás, de que eu apenas tinha tocado na superfície e que sobraram outras camadas; e o assunto, como sabem, era sobre o poder da leitura... aliás, considerar a leitura como uma forma de poder é uma afirmação bastante precisa: numa certa vertente, a mais íntima, a mais silenciosa forma de compreender o outro. Não preciso estar a teu lado para te entender, não preciso nem mesmo ser contemporâneo teu, e como conversamos, como nos confessamos a cada vez que folheio o que escreves. As leituras encurtam os séculos, são como dobraduras do tempo, buracos de minhoca: ler é ser inoculado pela história; e não por acaso escrevo a palavra ‘história’ com minúscula: enquanto que a ‘História’ é o destino selado pelos vivos, a ‘história’ é o legado de quem está morto; o que a humanidade criou esteve sempre nas mãos de quem só viverá um punhado de décadas.
Evidentemente, existem outros registros: a pintura, a arquitetura, tantos outros objetos culturais quanto somos capazes de verter; mas, de alguma forma, o ato de escrever conserva com maior força os epitáfios. Mesmo quando se mente, informa-se mais mentindo em texto do que quando existe honestidade em algum afresco. Mas há também nos textos uma psicanálise da leitura, quando não uma psiquiatria da leitura; não propriamente da leitura, mas de quem lê. Diferencio quem lê de quem é leitor. Quem simplesmente lê age por compulsão, por desespero, seja por obrigações estudantis, necessidades acadêmicas, por entretenimento ou capricho; situação diferente é o do leitor profissional, especialista e crítico. Seja por falta de público, como vem se caracterizando o universo da literatura nas últimas décadas, os escritores hoje geralmente escrevem para esse leitor especializado, mestre de cerimônias, que muitas vezes é outro escritor, principalmente quando se trata de poetas. Mas há quem lê por fuga. E há duas fugas possíveis: o inautêntico que não chega a nenhum lugar e o que chega, por estranho que pareça, à autenticidade. Quanto à leitura que só amplia a inautenticidade, penso no personagem anônimo de Jean-Paul Sartre em A náuseaapelidado de “o autodidata”.
Contraponto ao personagem principal, o escritor Antoine Roquentin, o autodidata lia livros na biblioteca pela ordem alfabética, ao que, no final do romance, o leitor descobre que ele também a frequentava para abusar de garotos. Impossível não olhar para o comportamento obsceno como um prolongamento de sua obscenidade em relação aos livros. Muito se escreveu sobre o autodidata de A náusea. Recomendo o texto “Armadilhas da erudição: o autodidata e a vacuidade existencial segundo Sartre”, de Renato Nunes Bittencourt, na Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, em 2015. Mas há outros artigos igualmente competentes sobre o tema. Em linhas gerais, o autodidata representa a erudição vazia do enciclopedismo, que apenas acumula num “somatório anárquico de informações heteróclitas”, que, “em vez de lhe favorecer o estímulo efetivo para a ação”, age como entorpecente, a inibir todas “as capacidades criativas do pensamento humano”[1]; o autodidata constitui crítica a um tipo de educação, de leitura e de acervo. Bittencourt nesse artigo interpreta a presença do personagem no romance como uma crítica a um “projeto educacional livresco próprio da sociedade moderna, disciplinando a vida do estudante a partir da sua submissão a um parâmetro acadêmico de traços normativos que impede qualquer autonomia crítica e criativa”[2]; o título mesmo “autodidata” seria uma boutadesobre as “reais” características do personagem; autodidatismo que não lhe garante autonomia. Mas, questão de ordem, como garanti-la? Substituindo o quantitativo pelo qualitativo, o aleatório pelo orgânico? Se o personagem substituísse o seu método alfabético por uma metodologia mais concatenada seria menos medíocre? Sartre oferece a meu ver uma resposta insuficiente. Precisa-se ter em conta o inaudito, o inconsciente, o inesperado que flui à cada leitura; quando um livro retirado da estante significa um abalo no universo; aliás, foi com um livro caindo da estante e assim começou a pequena Murphy a decifrar a teoria das cordas em Interestelar.Não creio que o leitor precise estar subordinado ao escritor e nem o ato de ler ao de escrever. A leitura se enquadra a uma forma de existência; lê-se compulsivamente, obsessivamente, não importa quem te ofereça, não importa sobre o que seja... lê-se, como quem ouve música, para acalmar os gritos. Trata-se de uma leitura em nada atrelada à escritura mas que não deixa de ter a sua emoção... É também uma maneira de fingir que trabalha. Assumindo um trabalho inexistente, livra-se ao mesmo tempo de dois infernos: o trabalho e a preguiça. Só assim se devora bibliotecas inteiras, com febre e fastio; e a atividade da leitura se desvincula da do escritor, pois, da mesma forma que se escreve para ninguém, isto é, para um leitor invisível, é absolutamente crível ler da mesma maneira. Lido pelos olhos de um leitor faminto, o escritor soa como a voz de qualquer um.
Há também um jogo dinástico com a morte. Lê-se até onde der. Quando lerei a última página? A última palavra, a penumbra da última letra? Constitui desafio não apenas do escritor obsessivo, mas do leitor idem. Entende-se o porquê de a biblioteca ser um componente importante no romance de Sartre, na vida dos personagens principais: as bibliotecas são a promessa de infinitas leituras e de infinitas formas de vida, que acabam por me iludir que terei, em extensão, uma igual vida infinita; mas não, a leitura substitui a extensão pela intensidade, como os matemáticos que creditam mais extensão nos números racionais em comparação com os inteiros. Ler é sempre mais extenso que escrever: concede-se um poder de aprendizagem, que a escrita não concederá (talvez só no teatro e no romance), sobre outras vidas. As bibliotecas formam quase um santuário, talvez por isso quando as visitamos sentimos o desejo de cometer algum sacrilégio... e até de destruí-las.
Como não olhar para essa história toda e pensar “não mereceu o Museum de Alexandria ser queimado e destruído?”. Como não olhar para a destruição desse centro educacional e científico, arrasado pelos cristãos, como substituição de uma religião por outra; como, enfim, não olhar para Hipátia, violentada e assassinada, quando protegia os portões da Biblioteca, como verdadeira santa da filosofia, mártir do conhecimento. As bibliotecas... sempre as bibliotecas, o onipresente que nelas habita. Olho-as no plano da eternidade descrito por Leibniz: cada livro é feito uma mônada com sua história já contada; as bibliotecas seriam os diversos mundos possíveis; assim, conjunto à angústia existencial descrita por Leibniz quando na criação (“o ser e não, antes, o nada”), outra angústia, de ordem axiológica, e não menos pior: qual o universo que se deve escolher? Qual o melhor? E, desde quando o critério da complexidade ou o da simplicidade é o certo? Olhando de fora as questões, tudo parece ridículo. Pensando nessas comparações, quando se entra numa biblioteca, dá para sentir... há muita liberdade trancafiada lá dentro. Uma amiga quando visitou pela primeira vez a cidade do namorado disse-me que a primeira pessoa que ele lhe apresentou foi a bibliotecária; ele, que depois viria a se tornar professor, tinha a biblioteca como a sua casa e a bibliotecária da cidade como acima da família. Por sinal, muito se falou do preciosismo do ato de escrever, muito se escreveu sobre. Cioran, Sartre, Lévinas são nomes que eu me lembro que trataram do assunto, sem falar de Jacques Derrida que investigou de maneira não muito distante o conceito de escritura; mas eu não me lembro de a noção de leitura ser seus temas principais. Quando a citam é sempre a partir da perspectiva do escritor. Talvez seja porque a olham mais como uma atividade educativa do que criativa, porque a veem dependente da atividade (esta sim, uma criação) da escritura. Se a leitura possui algum poder criativo estaria vinculado à interpretação e ao teatro. Concerne à dramaturgia a habilidade de transformar o que foi escrito por alguém em força expressiva. Quando se reconhece algum poder criativo na leitura está se concebendo a arte como comunicação. Mesmo os diários de Anne Frank ou as obras póstumas de Franz Kafka guardam desde o início independência em relação ao autor. E pouco importa pedir que os escritos sejam publicados ou destruídos. Os herdeiros que decidirão. Entre os letrados, alguns acabam escrevendo, mas todos, sem exceção, estão obrigados a ler. A leitura está para um ritmo, para uma “linguagem privada”, até porque o próprio ato de escrever é expressão desse internalismo. Dizem que das quatro operações linguísticas (fala, escuta, escrita e leitura), é a última a se desenvolver, e a mais complexa. Talvez seja, e, talvez por isso que na leitura guarde, em relação às demais operações, o seu fim: a linguagem sempre desejou o silêncio, não um silêncio qualquer, mas um que fosse inteligido. Talvez isso que seja a leitura. Os orientais chamavam de tao e os hegelianos de suprassunção; é quando ouço o outro dentro de mim; a conversa mais íntima e ao mesmo tempo a mais afastada de todas. A carta comprometedora, os anos de leitura enquanto se está preso. Mônadas que somos, os livros são as nossas únicas janelas. Em suma, das operações linguísticas, a leitura é a mais relevante. Poderíamos comparativamente afirmar que, enquanto a fala trata da epistemologia, ou seja, do conhecimento determinado pelo homem sobre as coisas, seja no construto das nomenclaturas, quando Adão caminhava no Éden, a escuta trata da ética e da moral, do estar atento ao outro, ao que ele diz e tem a nos dizer; a escrita, por sua vez, trata da vida política, do engajamento e da práxis; quando escrevemos inevitavelmente escrevemos para alguém; queremos de alguma forma intervir objetivamente, e a leitura, de que se trata? A leitura será a metafísica, onde a linguagem mais se aproxima do pensamento; nela habita um sentido e eu até ousaria, um estilo que não precisa ser comunicado a ninguém. Não só o escritor, mas também o leitor deve ter sua voz; o que aproxima a escrita e a leitura, por sua vez, da música. Pode-se falar de um ritmo que nos coordena nos enredos. Pode-se até mesmo falar de diferentes estilos de leitura, várias maneiras de ler um mesmo livro, extraindo, por conseguinte, dessas diferentes tonalidades, diferentes histórias; e nunca um livro é lido – até pela mesma pessoa – duas vezes da mesma maneira.
Uma expressão e das melhores do famoso fragmento 49 de Heráclito de Éfeso. Enquanto que a escrita é ontológica, a leitura é deveniente, está mais para um fluxo, um ritmo. Entende-se o porquê de Sartre em O que é a literatura? atrelar a atividade literária à escrita, em especial, ao que hoje se denomina de engajamento; a começar, com a sequência dos capítulos “O que é escrever?”, “Por que escrever?” e finalmente “Para quem escrever?”. Sartre é fiel ao projeto cartesiano-fenomenológico de O ser e o nada e assim analisa as atribuições da literatura segundo os paradigmas da consciência. Uma consciência-liberdade e uma liberdade que quase se restringe à práxis. Caudatário ao cogito cartesiano, acaba conferindo à leitura uma passividade que, sinceramente, a ela não confere. Por isso se concentra tanto na escrita: comparando O que é a literatura com O ser e o nada, o ato de ler é tratado no mesmo nível de passividade que o ser, ao passo que o estrelato será dirigido pela consciência, que o filósofo define como sendo a dimensão do nada, e, linguisticamente, pelo ato de escrever. Não por acaso que nas duas obras supracitadas, dedica quase que nenhum comentário sobre o ser e o ler: em O ser e o nada, as quarenta e três páginas de um calhamaço com mais de seiscentas, e em O que é a literatura? o tema do leitor é tratado no terceiro capítulo e de forma atrelada à tarefa do escritor, até porque o título desse capítulo é, como vimos, “Para quem escreve?” e não “Por que se lê?”. “Por que se lê?” seria uma pergunta menor, caudatária das demais. Mas talvez seja preciso perguntar sem se importar com as respostas dos escritores.
É talvez a pergunta estrutural que comanda cada um de nós quando folheamos um livro. Para começar, lê-se de muitas maneiras: lê-se de uma só vez, lê-se em voz alta, em silêncio, lê-se um livro e não se comenta com ninguém, lê-se também vários livros ao mesmo tempo, algumas vezes essas leituras concomitantes ajudam no entendimento recíproco, outras vezes atrapalham; lê-se tanto e em diversidade tamanha que o texto mais lembra uma receita: o resultado depende das mãos de quem folheia e não só de quem escreve. Talvez por isso que os escritores sejam leitores tão ruins. Vivem apegados à sua voz. Interiormente somos muitas vozes, clarins de uma língua esquizofrênica. Escrever é uma forma de domá-las. Quando se escreve, atenua-se o fogo, controla-se o espírito. Esse o poder da palavra: antes, engajamento, agora é freio dos instintos; antes, uma práxis, agora, uma terapêutica da inação. Seria uma tolice querer determiná-la. Escrevo também de muitas maneiras e por muitos motivos. Acalma o sangue, contém os meus gritos, o que causa até certo prazer, negativo. Significa, enfim, prazer no controle, de pôr a emoção em dia; esse é, pelo menos para mim, o primeiro sentido da palavra. Nesse aspecto, escrever é o ser em confronto com o devir de cada leitura. E, não por acaso, quando lemos sentimos sempre a necessidade de corrigir. O devir flui na maré do pensamento, em meio às leituras, e o ato de escrever nada mais é do que uma tentativa de domesticar o que está em chamas. Ao ler o que os outros escrevem, há enriquecimento, da mesma forma que se empobrece a cada vez que se escreve.


[1] BITTENCOURT, Renato Nunes. “Armadilhas da erudição: o autodidata e a vacuidade existencial segundo Sartre”. Revista Transdisciplinar Logos e Veritas. Vol. 2, nº 07, 2015, p. 35.
[2] Idem.




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André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975 no Rio de Janeiro. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela Uerj, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela Uerj o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou "Flor à margem" (1999), "Um brinco de cetim" (2003), "Primeiro de abril" (2004), "ISTO" (2005), "Ao léu" (2007), "Terno novo" (2012), "Mas valia" e "Nós, os dinossauros" (2016). Leia outros poemas do autor aqui e aqui.

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