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degradar os homens sem perturbá-los - oito poemas de Bruno Marra

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Screenshot de uma rua





ESTRADA DO M'BOI MIRIM


de madrugada
com sete anos
vi a polícia
pichando a cara do homem algemado

a cara preta pintada pela luz vermelha da sirene
os olhos brancos olhando pra mim
a cara preta de olhos brancos
algemada e pintada pela luz vermelha da sirene
olhando pra mim

– no muro
a palavra escrita pela metade



Screenshot de uma rua



§


mas que requintes são estes os do caminho?
estamos indo pra lá agora
e sabemos [!]
neste momento o destino fazendo a curva
com nossos pés
nossos próprios pés
a quem obedecem se não definem o trajeto?
porque nos sustentam, os pés, se nossos passos só aproximam a queda?
mas que beleza é essa que nunca existe completamente e nos deixa
                                                                             [ ¿ s a u d a d e

passo-a-passo voltamos desses futuros
negociando a dor e o prazer atropelados no caminho

o absurdo é compreensível
a lei da gravidade é conhecida
– é a maçã que dói




§


vencedores, os
que se conformaram
voluntariamente
e por conveniência
ganharam
o que não se disputa



Punishment park, 1971



§


nunca existiu nenhuma promessa
e todo mundo continua
em suspenso
carregando pedras de pouco em pouco
                              pra dentro do esquecimento
de ouvidos atentos
pro momento em que talvez
o fundo surja
de um barulho confuso
do som de algo se chocando
contra os pressupostos
lá no fundo e longe da vista
o barulho da resposta sem uso
a catarse despercebida
pela gravidade
infinita
da esperança




§


nos seus óculos
o reflexo de alguém
estranho
a distância
nos olhando



Misère au borinage, 1934



§


as coisas que só podem ser ditas
tão baixo
que quase ninguém vai ouvir
logo as coisas que precisam ser ditas
agora
justo as coisas
que precisam ser
gritadas
são ditas por alguém
que ninguém conhece muito bem
alguém que só existe em poucas gargantas
e poucos ouvidos
de cada vez
alguém que precisa nascer
em momentos como esse
em que faltam      os que se dispõem a ouvir aquilo que pensam já ter ouvido
        faltam       os que se dispõem a ver o que pensam já ter visto
  e faltam        os que se dispõem a viver
aquilo que pensam ainda não ter morrido

pelo silêncio dissolver as certezas
eles nos obrigam a gritar”

vários mundos existem ao mesmo tempo
porque não existe esse silêncio
é tudo
o que ninguém escuta
sempre de fundo
entre os deveres
e o tempo que espera pra ser
vendido




§


coração exercitado como músculo
animal
alojado no meio da promessa
– o sangue fica rouco
procurando o caminho do mar



sem legenda



§


[quando de dentro da cadeia]

alguém diz:
se hoje permaneço preso
longe da rua
(me desculpem)
“é que as portas às vezes são estreitas”
e meu corpo foi chamado pra OBSTRUIR OUTROS CAMINHOS
é que as janelas viraram TV's sem controle
terremotos movem minhas pernas
sigo gritando daqui o que posso
contando os dias na parede riscando
o concreto das leis de qualquer tábula legível –
estou preso mas
minha sentença de morte nunca vence

“Como os pássaros que migram pra um lugar melhor”
talvez a gente sempre esteja entre os que cortam o vento
(e carregam o grande fardo)
necessário pra seguirmos –
Nossa pena é mais leve
porque sabemos que o vôo existe (?)

neste buraco
em que nos encontramos                    hoje
precisamos cavar
a fuga da prisão





§




Foto por Mendel Grossman, do acervo Yad Vashem - World Holocaust Remembrance Center, domínio público


________________________________________________________________________


Bruno Marra (São Paulo, 1991) faz algumas coisas em forma de filme, música e livro. Escreveu “pelo que a sobrevivência mata” (Editora Patuá, 2016) e, como fato biográfico, prefere não listar títulos, graduações, empregos, premiações e outras medalhas de honra ao mérito. Vive para partilhar a beleza e resistir à morte junto com os amigos e amigas, até mesmo aqueles(as) que não conhece pessoalmente e nunca vai poder conhecer.

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