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Olá, pequeno monstro do dia - Claudinei Vieira

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do tempo quando cultivava o medo
e o medo permiti fosse maior
que o amor

do tempo quando inibi o mundo
e o mundo não percebi era menor
bem menor
que o amor

do tempo agora estou aqui
movimentando-me neste vácuo
e o vácuo (já entendi)
é infinito

não tão infinito
quanto o amor
caso o amor
ainda me houvesse

não tão infinito


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nossa alma (caso exista)
é caquética
e manca em pedaços, pelos restos
que deixamos debaixo das solas
dos sapatos usados manchados
de sangue coagulado
(e quantos sequer usam
solas de sapatos?)

nossa alma (caso algum dia tenha existido)
é seca
e, mesmo assim, não se importa
não se liga, não se lembra,
das poças de lama de merda,
dos rios de lama de merda doce,
das enchentes de cadáveres adocicados
enterrados submersos esquecidos

nossa alma (e ainda há quem acredite)
é cega:
não só não percebe
o tanto de negros mortos
em um pequeno espaço africano,
como sequer os viu vivos…
não só não percebe
o tanto de negros mortos
em quebradas brasis , em periferias brasis,
como sequer os viu vivos…
não só não percebe
o tanto de índios mortos
em terras devastadas atadas
como sequer os viu vivos…
não só não percebe
o tanto de mulheres mortas
em mesas de açougueiros tortos,
o tanto de mulheres curradas,
o tanto de mulheres violadas, espancadas,
o tanto de crianças curradas,
o tanto de crianças violadas, espancadas,
como sequer as vê…

nossa alma, caso existisse,
não serve para nada

sobre a utilidade de nossas almas


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e se me fico assim
nessa espera doída de um abraço seu
dos que me acalentam
à borda do furacão
ou nessa angústia covarde
de que a ponta dos ossos de suas asas
arranhem minha alma já avariada

neste aguardo ansioso de sua língua fervente
a lamber meu corpo a me acalmar o sono
ou o medo pavor de que o bifurcado escaldante
queime arranque minha pele

e se me fico assim
com essas esperanças cegas
a me preparar para o pulo

ponta das asas




a carne é fraca, sim, é fraca
o cassetete é duro, sim, é duro
o gás é mostarda, sim, mostarda
os pecados são puros, sim, são puros
mas a rua é larga a rua é imensa
a rua transborda a rua não comporta a tempestade
enquanto torrente, enquanto corrente
imparável, indomável
a vontade é impactante, sim, impactante
e toma conta da rua
a verdade é tamanha
a verdade é total
enquanto provém da rua
a verdade é insuperável, insuportável,
intermitente, inebriante

a carne é fraca,
mas só enquanto não for
corrente

a carne é fraca


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não são pessoas, são corpos
não são pessoas, são negros
não são pessoas, são alvos
não são pessoas, são pobres
não são pessoas, são mulheres
não são mulheres, são sacos de pancada
não são mulheres, são sacos de esperma
não são mulheres, são sacos de fetos
não são mulheres, são corpos

não é comida, é merenda roubada
não é comida, é entulho salgado
não é comida, é lata sem água
não é água, são ações da bolsa de mercados
no bolso dos capitalistas engordurados
não é água, é poço de dengue
não é água, não é direito
não é água, é lama
não é água, é lama

é lama
são corpos
não somos pessoas

não são pessoas


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mergulharão aonde,
peixes de Adriane Garcia?
por mais profundo,
por mais esguios,
alcançarão corações e desfiladeiros?
terão tanta coragem e destemor?

mergulharão de onde,
peixes de Adriane Garcia?
de onde provém tanta natureza,
tantas correntes em corpos tão diminutos?
[ porém quanto sabemos de que sabedoria
não necessita de corpos, mas de viagens...? ]

pois então que viajem, peixes e oceanos,
pois se não fossem de ter coragem,
sabedoria, profundidade, águas e águas,
se não descobrissem pétalas douradas submarinas
subterrâneas cotidianas,
águas e águas,
não seriam , obviamente,
peixes de Adriane Garcia

peixes de Adriane Garcia


poemas de ‘Olá, pequeno monstro do dia’, editora Benfazeja, 2016
Galeria: Joana Jankowska



Claudinei Vieira, autor do livro de contos DESCONCERTO, editado pelo selo Demônio Negro, YŨREI, CABERÊ, publicado pela editora Patuá, integrante da coleção Patuscada (premiado pelo ProaAC - Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo), e participação em várias antologias de contos e poesia, como Visões de São Paulo (Tarja Editorial), Sobre Lagartas e Borboletas (Scenarium), entre outros, o mais recente Golpe: Antologia-Manifesto (livro digital). Além das contribuições para vários sites, blogs e portais, com resenhas, ensaios, entrevistas. e outros textos de ficção e de não-ficção. Organizador de eventos e encontros literários culturais, como o cineclube Pandora (que durou cinco anos de atividades na Universidade de São Paulo) e, atualmente, dos Desconcertos de Poesia que, depois de atravessar por várias localizações pela cidade de São Paulo, como Praça Roosevelt e Casa das Rosas, está atualmente no Patuscada - Livraria, Bar & Café, na Vila Madalena.

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