I
O que é uma primeira leitura? Haverá esse momento acadêmico? Todo leitor carrega consigo a leitura de outras matérias primas, onomatopeias e neologismos. Será de fato exequível? Como recuperar o inconsciente, o que já caiu e não retorna, esse mostruário que constitui a história, mesmo a história pessoal, que, se, por um lado, não se revela como um programa televisivo, com cenas claras para a consciência, por outro, determina, decisivamente, o que fazemos. Sub-reptício aos discursos, a leitura que em geral se faz carrega consigo a sua coleira. Somos, estamos, definitivamente, estigmatizados. Ainda que digam que não, até porque o discurso oficial exige uma polidez que, convenhamos, ainda mais nesse país, ninguém possui, as leituras envolvem aquilo que nos bastidores se chamou de currículo oculto. Palavra que todos conhecem e ninguém pronuncia, palavra proscrita, o currículo oculto funciona no Brasil como uma espécie de lista negra, aliás, no atinente a políticas de fomento à cultura, o máximo que se obteve no Brasil não passou de macartismo. Há uma mar de indicações, de aproximações estéticas que, no fundo, não passam de aproximações políticas. Desde os concursos públicos nas universidades à seleção das editoras, sem falar dos jornais e das revistas, que nunca foram democráticas mesmo, nada é incólume. Em política, a estética sempre agiu, mesmo nos momentos mais libertários, de forma caudilhista, atrás do reconhecimento e da satisfação. Que todo valor esteja respaldado no intersubjetivo, é algo que hoje quase ninguém contesta, e mesmo quando se contestou, a axiologia estava calcada em estabelecer o universal independentemente da anuência de uma cultura ou de qualquer outra inclinação. Kant foi exemplo desse esforço; contudo, ainda que a proposta pela universalidade seja em vários aspectos mais um esforço do que de fato algo efetivo, não significa que se deva desistir. Há um limiar, tênue por sinal, entre o cinismo e a canalhice. Exercício de isenção, de imparcialidade e de desejo por retomar esse olhar primeiro.
Mas o caudilhismo existe. A comunidade acadêmica envolve um grupo social definido: escritores, tradutores e professores, quando não se acham na mesma pessoa, retroalimentam-se em suas afirmações. Uma ditadura da forma, uma reedição da escolástica, que sutilmente alfineta e dinamita outros estilos. Costuram-se assim as alianças que definirão os futuros prêmios sob a pauta, sempre funesta, que a vida prática pouca importância tem, pois o que importa, no final, é escrever. Seria o mesmo que dizer que não se trabalha por dinheiro, o que é falso, pois se trabalha. Quando respostas evasivas estão mais para encobrir do que para mostrar, quando a verdade está a serviço como nas campanhas onde se encobrem os índices de rejeição com os de aprovação, quando dizem que escrevem só por prazer ou por amor à literatura, eles mentem, pois também se escreve por dinheiro. Acreditar no contrário é não conhecer bem o que é um homem; fingir uma faceta angelical que nunca existiu. Ninguém precisa colocar Diógenes contra Platão; toda atividade humana é capaz de aliar, mas também de alijar, as mais diversas necessidades, materiais e espirituais.
E mesmo quando ele era ainda escravo, perguntaram a Diógenes qual era o seu talento e ele respondeu que era o de mandar, duvido que só tivesse por intenção a provocação e a denúncia, como também uma forma de obter a alforria, o que, aliás, obteve. Diógenes estava certo. É preciso aprender com os psicopatas, como conseguem esse brilhantismo em não sofrer. Como fazem uso da palavra dever: a moralidade lembra uma corda bamba que atravessamos com a rede embaixo e que caso venhamos cair, descobrimos que estamos mais seguros na rede de proteção do que atravessando a linha. Sob o toldo do século XX, tudo não passa de campanhas e os poetas, de publicitários; escritores continuam e continuarão sendo pautados pelas editoras e, em consórcio com a academia, continuarão a ditar as leis do mercado. Mascara-se uma indústria onde professores, universitários, assistentes qualificados, doutorandos e estagiários disputam com unhas e dentes a marca de tal progresso.
Ler sempre envolve uma certa disposição, um certo gosto, um certo sofrer; trata-se de uma verdade que não há como escapar e, por isso mesmo, por ser irrefutável, está à serventia das tiranias. Grupos são hostilizados, nomes são lançados no ostracismo, além de se negar com isso um círculo: o senso comum que se constrói é em parte constituído a partir da crítica e é nisso que consiste, pelo menos em termos estéticos, o obscuro das utopias: por detrás de toda vanguarda, a imitação do aparato e do funcionamento da ordem que derrubou. A crítica ratifica o senso comum acadêmico, tão rasteiro como qualquer outro, além de o público confundir-se com os autores; uma superfatura de dissertações e de teses, ocupando as prateleiras e os HDs e a sensação de que já se disse tudo o que se tinha para dizer... as pós-graduações são marcadas pelo lugar comum, um cantochão de coroinhas dedicados aos estudos de antigos e novos cânones. Uma tirania de peritos, scholars, em que as instituições, as comissões e os prêmios, quando tomam uma decisão, começam por se informar junto a eles. Fala-se, portanto, de uma indústria e de consumidores. Há fiscalização de todo lado nas universidades, todo mundo acaba dono de algum autor... afinal, basta ter um nome para servir de etiqueta.
Mas, na primeira leitura, está também o desejo, a tentativa de olhar “com olhos claros”, como quando o barro se fez homem... ao gutural de nossas impressões, o suave do mundo, de quem ainda se espanta como nos primeiros séculos. Há na poética um misto de lógica e estética, de raciocínio e sensação e é talvez nesse barco que embalam as figuras de Manoel de Barros, que nos convida a olhar o mundo como pela primeira vez. Era esse também o programa de Mário Quintana, que nos convida, diferente do poeta pantaneiro, que se coloca a ouvir o orgânico e o inorgânico da natureza, pedras e pássaros, a ouvir a quietude dos objetos, um relógio, como em Sapato florido:
O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio da parede
conheço um que já devorou
três gerações de minha família.
O espanto, quiçá, o horror, mas sempre uma impressão que nos movimenta. Uma das razões que me levou a desistir da poesia foi o comentário de um professor universitário sobre meu último livro: “foi uma boa leitura pela manhã”. Que a vida está sempre a um passo de acabar, isto todos sabem e talvez por isso mesmo que eu e nem ninguém mereça o título de “uma boa leitura”. Preferia que ele me odiasse, que me desprezasse, que me cuspisse! Sempre melhor o gênio ou o mártir, mas nunca a mediocridade... em geral, os mais bem sucedidos são os medíocres, esperáveis, a contendo e eu espero do leitor não menos que o sentimento de raiva e de febre, ou mesmo de serenidade. A serenidade também guarda seu grau de radicalismo e intolerância. Mas nunca, em hipótese alguma, uma boa leitura pela manhã! Só agora, frustrado, entendo o próprio mistério da criação, elucidado por Leibniz: “por que o ser e não antes o nada?”, por que, enfim, dedicar tanto, insistir? É a pergunta que Deus teria feito se fosse Leibniz e a mesma de Beethoven, quando em 1826 escreveu “Muss es sein? Es muss sein”; “É preciso? É preciso”, e que o poeta Sebastião Uchoa Leite, meditando sobre o tema, escreve em A regra secreta:
Já totalmente surdo
Que queria dizer
Nosso herói pós-romântico?
Jamais se soube
Beethoven, e só poderia ser um músico... a música, que, desde Schoppenhauer, a filosofia fez questão de tratar como a mais completa das artes. As leituras, as consciências e as existências fazem parte do ato de criar; escritor e leitor não estão desapartados, um depende inexoravelmente do outro, e da leitura, não espero apenas uma boa leitura, mas a leitura, uma que não precise agradar, mas que eu sinta que eu lhe fiz mover, mesmo quando o leitor me negue; quando, enfim, extraia dele o tédio e não o blasé. Enquanto que o tédio é experiência capital, autêntica e criadora, o blasé responde pelo cotidiano mais que cotidiano, impróprio e discriminador; do blasé, não espere nem da parte do escritor com suas escrituras e nem da do leitor com suas leituras, criação alguma, só o preconceito generalizado. O blasé diz de alguém que você esperava ficar impressionado ou empolgado, muito comum no mundo da moda e das celebridades; relaciona-se mais com o esnobismo do que com cansaço; há uma ponta de arrogância na medida em que, propositalmente, não mostra interesse com o que há ao redor, e parece não se importar com a opinião dos outros. O blasé é pretensioso, egocêntrico, inautêntico; aquele que age assim faz das ações mais uma experiência estética que religiosa, no dizer de Kierkegaard. Próprio de nosso tempo, responde, no fundo, por um código. Trata-se de uma atitude que exige técnica e esforço que precisa ser dominada com perfeição, pois, do contrário, será desmascarado como falso blasé. Ocupa as altas rodas e, em grande parte, é uma ideia alimentada por aspirantes e imitadores. O sotaque analisado de quem mora em Ipanema é exemplo. Situação diferente quando comparado ao tédio e mesmo ao spleen. O spleen, relacionado ao ambiente descrito pelo poeta francês Charles Baudelaire, diz respeito ao estado de melancolia, um sentimento, mais do que de desânimo, de isolamento e tédio. Em carta para a mãe, Madame Aupick, o autor de As flores do mal chama de “uma vaga infelicidade”. A tristeza, quando imantada em cada objeto, em cada fresta de luz atravessando as cortinas. Sartre soube em A náusea reproduzir em romance o ambiente dos versos de Baudelaire, e no Brasil, na década de 1990, um autor à altura dessa emoção é Heitor Ferraz Melo, que desde A mesma noite, nos introduz nessa terra ao mesmo tempo claustrofóbica e aconchegante. Nos escritos deles, não há desespero; pelo contrário, só elegância, como se aquele habitat lhes fosse próprio. Acostumar-se com a tristeza é talvez o segredo do spleen:
O homem especial caminha na hora do almoço
Entra num restaurante e procura um lugar
de onde possa ver a rua através da imensa vidraça
O homem especial mastiga a comida
e vê a rua que passa em frente
ondulações de cabeças
e a esgrima de guarda-chuvas e jornais
O homem especial come calado
destroça uma torta de morangos
– a hora especial de sua torta de morangos
e névoas de café
Quem mais, se não em um morador de São Paulo, a carga de tal pensamento? O que Baudelaire chama de spleen nada mais é do que a sensação de quando não se consegue mais sentir; de que tudo se mistura como uma ondulação... a cidade torna-se uma prisão de portas abertas. Com o aumento da população das cidades europeias, os parisienses, por exemplo, reagiram pessimamente com a numeração das casas da cidade; o registro, que facilitava serviços que se somavam com a era industrial, só reafirmava a substituição da cidadania pelo anonimato, da participação política pela apatia política. Passagem, segundo Émile Durkheim, da sociedade mecânica em orgânica, e que outra cidade brasileira se não São Paulo que servirá de guia e desespero de outros tantos autores. Na lista, incluem-se também as figuras de Diniz Gonçalves Junior, Donizete Galvão, Ruy Proença e Tarso de Melo: quantos caminhos distópicos se acentuam nessa terra de metecos, onde ninguém se reconhece e talvez por isso mesmo, pelo fato de as grandes cidades se oporem ao ideário da polis grega, que a antiga ataraxia, a imperturbabilidade do espírito, providencial para a felicidade, seja substituída agora por outras formas de apatia. O orgânico do corpo ditado pelo orgânico da cidade; assim, da ataraxia redentora à ataraxia claustrofóbica, a apatia pelo apaziguamento das paixões e a determinada pelo esmagamento das cidades, um ambiente definido pela cidadania e outro definido pelo anonimato são apenas algumas expressões que permitem refletir e perguntar, em oposição aos existencialistas, se a angústia só constitui afeto original em um universo definido por nossa atual decadência contemporânea e não outra, o quanto a eleição da angústia para afeto original está determinada como registro histórico. Nó górdio, que põe em dúvida Kierkegaard e Heidegger: a angústia e o tédio constituem estados de humor que sempre sinalizaram o originário, independentemente do período histórico, ou, antes, só na contemporaneidade que se tornaram referência da apreensão originária?
Quanto ao professor universitário amigo meu que rejeitou o livro argumentando que foi uma boa leitura, lembro que nem sempre esse embaraço ocorreu entre nós, que houve situações em que foi entusiasta dos meus poemas, até mais do que eu mesmo, a ponto de publicar um poema meu na mais importante revista de literatura do país. É preciso fazer essa ressalva e deixar claro que minha gratidão é enorme, mas também não posso deixar de reparar, quando a leitura é favorável, o quanto já responde ao gosto do leitor; o quanto, enfim, há de esperável no que se lê. Será possível olhar de novo o mundo como se olhasse pela primeira vez? As leituras serão sempre judicativas? As experiências estarão sempre à mercê do juízo? E mesmo o espanto não envolve alguma expectativa? Enfim, mais do que questões em teoria da literatura, as perguntas acima tocam o universo da linguagem. Talvez quem melhor explique são aqueles que atravessam a linguagem ainda em estado de croquis, ou seja, a criança... onde a palavra mais se aproxima do desejo e o pensamento é campo fértil... sugiro até que não mais se explique à infância o que é a vida, mas que se peça a ela que nos explique. Parte-se do entendimento de que a criança guarda a palavra mais do que nós – a palavra, que na criança ainda é a experiência nova, e só depois será uma camisa de força sob medida... quando ainda não se cobre com lapsos e nem com chistes, eis os motivos que depois serão protegidos de nós. Merleau-Ponty em Psicologia e pedagogia da criança, curso que ministrou na década de 1950 tendo como enfoque a constituição da linguagem, entreviu esse poder explicativo na experiência infantil. Também não custa lembrar a tarefa desempenhada pela epistemologia piagetiana, que estudou o conhecimento e a sua formação desde a mais tenra infância. Assim, conjunto a uma epistemologia genética, uma que seja direcionada à arte, como se produz o fenômeno estético em alguém, como este se cristaliza ao longo da vida. Não por acaso, sua fala se aproxima tanto da poesia, o que explica que tantos artistas (Manoel de Barros, José Paulo Paes, Klee e Miró, para citar alguns exemplos), tivessem interesse em retomar essa fonte, feita de movimentos repentinos, mais a inventar regras do que em cumpri-las. O episódio de que me sirvo para as conclusões a seguir, ocorreu com meu filho, de três anos.
Quando eu não mostro interesse por um determinado assunto, meu filho costuma dizer que “o papai não quer gostar da brincadeira”. Como unir os dois sinônimos conferindo um sentido tão complexo? E que elementos intencionais se acrescentam a essa dobradura, a esse ritornelo? O que impressiona em alguém tão moço é o reconhecimento, ainda que intuitivo, de um conflito interno, de que as nossas ações nem sempre correspondem ao que queremos; de que ao agir, há confirmação ou infirmação das ações com os nossos desejos. Nem sempre se age como se quer, nem sempre se afina à ação e é talvez nesse poder negativo que se instaura o dever e a liberdade, quer dizer, em certo poder, não propriamente de se autogovernar, ousado demais, mas que há momentos, não tão raros como se pensa, que temos minimamente controle, respondendo por nosso destino com alguma atitude mais infensa. O espanto que se pode ter com o mundo não é com o mundo, mas com nós mesmos, a capacidade de nos conceder o direito à outra vida, a outras vidas que aquelas que já nos habituamos a esperar... é o que talvez tenha faltado e falte em meu amigo, essa capacidade de abrir mão do orgulho ferido, em que nos damos ao direito de conhecer novamente e não de reconhecer, em varrermos o Olimpo e se afinar com novas ideias. A própria felicidade é uma decisão, da mesma forma, o gosto estético, o amor, a paixão e o espanto não deixam de envolver, cada um à seu modo, da nossa parte, alguma responsabilidade. É na viragem do senso comum que se revive o início, não como início literal, até porque “toda a experiência pessoal que cada um de nós consegue lembrar, por mais recuada que seja, é sempre e sem exceção experiência assente em mais experiência”[1]; mas como retomada e outra chance.
Há consequências morais em tudo e não poderia ser menos na literatura. Só assim se rompe com as intenções, só assim o apreciativo substitui o judicativo e, ainda que não se queira, a arte não clama por liberdade, nós que clamamos por ela, como também se clama por liberdade nos demais setores da vida humana.
II
Como em geral seguimos o destino, a arte costuma ser enquadrada no cânone de alguma escola. Por que desprezar a moda se ela é o fim de todas as artes?
III
...queria começar assim essa coluna, essa celeuma, e essa é a força que comanda as minhas palavras.
[1]MONTEIRO, João Paulo. “Strawson e a causação visível”, p. 72. In: CARVALHO, Maria Cecilia M. de. (Org) A filosofia analítica no Brasil. Ed. Papirus, 1995.
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André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975 no Rio de Janeiro. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela Uerj, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela Uerj o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou "Flor à margem" (1999), "Um brinco de cetim" (2003), "Primeiro de abril" (2004), "ISTO" (2005), "Ao léu" (2007), "Terno novo" (2012), "Mas valia" e "Nós, os dinossauros" (2016). Leia outros poemas do autor aqui e aqui.