A quem cabe escrutinar o universo?
por Carlos Roberto Rabaça**
Aos cientistas, que com seu método suprimem do entendimento da natureza as considerações sobre o significado humano; aos filósofos, que, como nos diz Cícero, não há nada de tão absurdo que não saia da boca de algum deles; ou aos poetas, cujos olhares são capazes de transcender as vicissitudes dessa existência? Certamente uma resposta não elimina a outra. Cabe a nós, no nosso íntimo, procurar as dimensões do conhecimento que mais nos aprazem - aquelas que são capazes de nos fornecer uma identificação única e nos permitem tirar do âmago o nosso melhor.
Certamente o/a “Gravidade Zero” de Guarnieri nos transporta a um universo paralelo de bem estar e nos fornece passe livre para viajar com uma brasilidade única junto ao seu astronauta/cosmonauta/espaçonauta Tom, uma recriação do Major Tom de Bowie. Seus poemas nos materializam em outro corpo, numa cronologia própria, e nos revelam expectativas e ansiedades que são nossas, sem ser.
"SE NASCI A SÓS EM MIM MESMO" (e sim, nascemos universos ilha), "ASSIM, JÁ NÃO ESTAREI SEMPRE SOZINHO NO COSMOS" (de fato nunca estivemos, apesar do frio do vazio cósmico e da perspectiva da expansão sem fim...), "SE TODA SOLITUDE SE ESVAI DE MIM?" (numa conexão real, em que universos ilha rodopiam em interações, chocam-se entre si e se fundem).
Este não é um livro de poemas, é quase uma biografia - a sua, que em algum momento da vida certamente achou que um dia decolaria da Terra, vagaria na gravidade zero do espaço sideral, encontraria Barbarella e colonizaria outros planetas. Mas isso não ficou pra trás... é parte desse universo paralelo ao qual nos sentimos transportados e acalentados.
Todos os sistemas estão prontos para a partida.
Agora só falta a contagem final. 4, 3, 2, 1.
** Carlos Roberto Rabaçaé astrofísico, mestre em Ciências Espaciais pelo INPE e Ph.D. pela The University of Alabama, Tuscaloosa, EUA. Trabalha como professor do curso de Astronomia no Observatório do Valongo, UFRJ.
4 POEMAS DE "GRAVIDADE ZERO"
hallo spaceboy (II)
desde a infância ( manipulando
dioramas de urânio, imaginados ),
acolheu tal fabuloso cenário:
no futuro haveria um trágico parque
temático de aeronaves despencadas
que, de longe, de algum horizonte
de isótopos, pareceria incendiado,
a fogos de artifício esverdeados,
o mês de março, na festa de são patrício,
protetor dos físicos e da fusão a frio
ou ainda em setembro, são josé
de cupertino, protetor de aviadores,
cosmonautas e dos estudantes
em véspera do exame mais difícil;
irromperia este personagem reativo,
um novo herói da físico-química,
mecanizado e a jato – mistura de ícaro
e hércules, o aço em paralaxe – capaz
de vencer o céu, vergar a gravidade,
avizinhando estrelas aos passos tão
próximos, por territórios
de corpos celestes,
inóspitos,
desde jovem teve essa dúvida atroz
( ou a certeza premonitória )
se não seria ele próprio
esse mártir metálico
lançado ao espaço
numa cápsula
de plástico
* *
laika ( 1954 - 1957 )
tendo idealizado o espaço,
( odor de fezes na astronave/
uma vira-lata molhada e sua
murrinha ) o cosmonauta se choca
ante a realidade suja: desagradável
crise sanitária instala-se, grave,
a anos-luz do seu planeta natal;
sentindo cheiro de pólvora na urina,
o insuportável aroma da amônia
e tudo isso aprisionado às narinas
foi possível senti-lo, inibido, animal cinerado:
estaria mesmo ali o cadáver da mais fiel
das almas entregue ao vácuo ou apenas
o retraído simulacro de um canídeo?
pondera sobre como laika teria ganido,
no limiar entre a vida e a desaparição,
o desespero de não emitir som,
sem osso ou carinho ( o rabo que não abanou )
não houve presença humana apenas
o frio monitoramento telemétrico
de suas tímidas funções vitais;
sem uivo que ecoasse no espaço, não houve
a quem seduzir com o olhar pedinte
da cadela vadia querendo acolhida e abrigo:
à mercê da eutanásia calculada, ( o sacrifício
físico do bicho ainda sanguíneo) afinal
nada disso é possível quando se está prestes
a explodir à bordo do segundo sputnik
* *
colonize marte sem olhar para trás
finque a iluminação pública no lado
escuro da Lua / é como atravessar a rua,
logo ali o lugarejo separado por milhões
de quilômetros sem oxigênio ou prêmio
somente o altruísmo ou óbvio martírio
do astronauta solitário por quem o mais
engenhoso robô do ovni luminoso possa
se afeiçoar / ah meu filho, apenas vá,
daqui serás o mais famoso ponto remoto
visto de telescópios cósmicos, serás
a melhor notícia em horário nobre, roteiro
de filme sci-fi / livro mais vendido /
herói de gibi / símbolo sexual / objeto único
de estudo / dos rocks de bowie / motivo
de orgulho e júbilo / cuidaremos da
tua família com pensão alimentícia
apenas suma, seu grande filho de uma puta,
* *
space oddity
a terra está para o satélite
como a água para a atmosfera
tudo gravita – a vida – equi
libra-se ainda que se esquive
o cometa do meteoro | as rotas
de colisão explicitam certa par
cela de perigo e medo a que
todos os corpos celestes se
submetem entre o caos e a
calma, dicotômicos | o som não
propaga o ruído está extinto
quando se orbita no frio deste
vastíssimo tapete dito infi
nito | que ímpeto teria pro
longado tão largo o nada tão es
cassa a massa quando comparada
ao absoluto tubo nulo onde tu
do está indubitavelmente contido ?
desenho da capa: "Major Tom", de Joniel Santos.
* * *
* * *
Garanta seu lugar na nave
ao lado do Major Tom!
GRAVIDADE ZERO,
livro de poemas que homenageia
David Bowie e seu astronauta
já está em pré-venda.
* * *
Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online AQUI (via ISSUU). Seu segundo livro é Corpo de Festim [livro ganhador do 57o Jabuti/ 2a Edição pela Penalux]. Em 2016, publicou pela Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores. A presente seleta recolhe poemas de seu terceiro livro, Gravidade Zero (Penalux, 2017).