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cala cala estrelinha - quatro poemas de Emmanuel Santiago

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Screenshot "The girl with all the gifts"





Alegoria


Quimeras
na câmara
de gás; seus corpos
caleidoscópicos
se decompõem
na aurora boreal.

Valquírias psicóticas
circuncidam uma locomotiva.

Despenca
a cabeça
do grande
girassol
de chumbo.

Gárgulas arregaladas
copulam sobre o túmulo
dos homens de vidro
e o espírito de Deus
paira sobre a face das
águas, boiando afogado,
feito uma carcaça de boi.




A chuva não veio


A chuva não veio
dispersar a areia
que satura o ar, não
veio lavar as calçadas
do sangue fresco, do
mijo seco, das seringas
e camisinhas usadas, de
nosso medo, que escorre
pelos poros dos muros.

A chuva não veio,
não veio o alívio,
o orvalho converteu-
-se em cinzas
e agora sufoca
a tundra noturna
do solo lunar.

A chuva, afinal, não
veio (como um cachorro
sarnento) lamber as feridas
do cadáver furado à bala
no fim de semana.

Ficamos esperando
que a chuva, lírica,
venha dessedentar
nossos sonhos desidratados,
mas a noite
é de concreto armado:
impermeável ao gozo

(mas a noite
é esse gosto
de chumbo
que fica no horizonte
depois do último gole
de crepúsculo).

Não choveu, mas,
mesmo que chovesse,
a alma é esse deserto de sal,
onde o verde não deita
suas risonhas raízes.




Acalanto para Mariana


A barragem rebentou:
toneladas de entranhas
(sanguinolentas
lesmas) vazaram
sobre o vilarejo,
o pequeno vilarejo
de Bento Rodrigues.

Com a boca banguela,
a lama engole as casas,
lambe esqueletos de gente,
de bicho, de gente, e chupa
o ventre da terra até sobrar
só o bagaço, até
soçobrar o bagaço.

O Rio Doce sufoca
de tanta lama; os
peixes perdem o gume
e morrem cegos, lâminas
corroídas de tétano;
o Caboclo D’Água
agoniza à flor do coágulo
que era o Rio Doce e já
não é mais; o rio apodrece
feito um cadáver insepulto.

A lama tritura
gente e bicho,
suas moles engrenagens
moem a paisagem, emporcalham
as barbas de Deus.

Revolveram
o miolo da terra
e a terra, solúvel,
tornou-se lodo venenoso
e envolveu nossas crianças
num abraço ácido.

Noventa por cento de ferro nas calçadas,
trinta mortos boiando na lama.
Agora dorme, Mariana!




Soneto decadentista


A noite, encurralada entre os prédios de Sampa,
debate-se qual pombo estúpido e ferido;
suas asas sem fim, em tremendo alarido,
fecham-se sobre nós — uma terrível campa!

O céu, feito um tecido esgarçado, se estampa
em grande confusão de estrelas e resíduos,
onde adeja o Desejo à luz do luar lívido,
mariposa febril em torno de uma lâmpada.

Em madrugadas como esta, de tédio e insônia,
concebo uma visão fascinante e medonha:
chega perto de mim um vulto de mulher

altivo e decadente, arcanjo e prostituta,
que me oferece, atroz, um gole de cicuta;
eis a Musa — não é? —, meu brother Baudelaire.






Emmanuel Santiagoé poeta, crítico literário e professor de Literatura. Autor de Pavão bizarro (poemas) e A narração dificultosa (crítica literária).

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