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Screenshot "The girl with all the gifts" |
Alegoria
Quimeras
na câmara
de gás; seus corpos
caleidoscópicos
se decompõem
na aurora boreal.
Valquírias psicóticas
circuncidam uma locomotiva.
Despenca
a cabeça
do grande
girassol
de chumbo.
Gárgulas arregaladas
copulam sobre o túmulo
dos homens de vidro
e o espírito de Deus
paira sobre a face das
águas, boiando afogado,
feito uma carcaça de boi.
A chuva não veio
A chuva não veio
dispersar a areia
que satura o ar, não
veio lavar as calçadas
do sangue fresco, do
mijo seco, das seringas
e camisinhas usadas, de
nosso medo, que escorre
pelos poros dos muros.
A chuva não veio,
não veio o alívio,
o orvalho converteu-
-se em cinzas
e agora sufoca
a tundra noturna
do solo lunar.
A chuva, afinal, não
veio (como um cachorro
sarnento) lamber as feridas
do cadáver furado à bala
no fim de semana.
Ficamos esperando
que a chuva, lírica,
venha dessedentar
nossos sonhos desidratados,
mas a noite
é de concreto armado:
impermeável ao gozo
(mas a noite
é esse gosto
de chumbo
que fica no horizonte
depois do último gole
de crepúsculo).
Não choveu, mas,
mesmo que chovesse,
a alma é esse deserto de sal,
onde o verde não deita
suas risonhas raízes.
Acalanto para Mariana
A barragem rebentou:
toneladas de entranhas
(sanguinolentas
lesmas) vazaram
sobre o vilarejo,
o pequeno vilarejo
de Bento Rodrigues.
Com a boca banguela,
a lama engole as casas,
lambe esqueletos de gente,
de bicho, de gente, e chupa
o ventre da terra até sobrar
só o bagaço, até
soçobrar o bagaço.
O Rio Doce sufoca
de tanta lama; os
peixes perdem o gume
e morrem cegos, lâminas
corroídas de tétano;
o Caboclo D’Água
agoniza à flor do coágulo
que era o Rio Doce e já
não é mais; o rio apodrece
feito um cadáver insepulto.
A lama tritura
gente e bicho,
suas moles engrenagens
moem a paisagem, emporcalham
as barbas de Deus.
Revolveram
o miolo da terra
e a terra, solúvel,
tornou-se lodo venenoso
e envolveu nossas crianças
num abraço ácido.
Noventa por cento de ferro nas calçadas,
trinta mortos boiando na lama.
Agora dorme, Mariana!
Soneto decadentista
A noite, encurralada entre os prédios de Sampa,
debate-se qual pombo estúpido e ferido;
suas asas sem fim, em tremendo alarido,
fecham-se sobre nós — uma terrível campa!
O céu, feito um tecido esgarçado, se estampa
em grande confusão de estrelas e resíduos,
onde adeja o Desejo à luz do luar lívido,
mariposa febril em torno de uma lâmpada.
Em madrugadas como esta, de tédio e insônia,
concebo uma visão fascinante e medonha:
chega perto de mim um vulto de mulher
altivo e decadente, arcanjo e prostituta,
que me oferece, atroz, um gole de cicuta;
eis a Musa — não é? —, meu brother Baudelaire.
Emmanuel Santiagoé poeta, crítico literário e professor de Literatura. Autor de Pavão bizarro (poemas) e A narração dificultosa (crítica literária).