continuo no longínquo, no alto, apenas semeando...
um dia arrebatado pelo verbo, parti. derramando a minha sede sobre a beleza preferi perder o senso ao paraíso. mesmo quando as musas me abandonaram escrevi, violentei todas as linguagens, derrubei as violetas das janelas, corri feito um cavalo selvagem, corri, corri todos os campos, córregos, corri todos os mundos, abri todas as porteiras, arranjei todos os cantos, flores, espantos, ultrapassei todos os pássaros, atravessei as margens do meu corpo... as mãos que me escreveram, emaranharam, arranharam.
os poderosos e os deserdados sempre arrancavam alguma coisa de mim por isso na poeira da estrada dancei conforme a música:
quanta injustiça um homem pode suportar calado?
a “verdade” é que uma dor insinua-se no meu peito.
continuo no longínquo, no alto, apenas semeando...
às vezes eu desço, mas me fecham as portas, me ignoram...
e mesmo o meu cão já não me reconhece.
lábios labirintos
tenho os lábios as bibliotecas as narrativas do mundo a memória e o
esquecimento
e ergo monumentais esculturas de papel no infinito dos olhos
e me perco nos labirintos imaginados na esperança de te encontrar
eu que sinto a sua ausência
e desenrolo no tempo o fio de ariadne
abro os livros tateio as páginas as texturas as tramas os corredores
o vazio entre as palavras as revelações
conto as narrativas do mundo para espantar a escuridão o medo
a morte
mas a saudade permanece...
vigília
conto sobre o silêncio e a minha vigília:
nesta cidade quase adormecida
você se esconde no inacessível
na paisagem deserta da janela aberta
e se agora o meu quarto pegasse fogo
minha alma certamente estalaria como as folhas secas
partiria como os pássaros que atravessam o céu no outono
sussurraria uma ingênua oração da infância
dormiria no leito dos seus braços...
eu que ando apartado.
“nietzscheanos”
sob as belezas crepusculares, a cada manhã, espalhávamos um pouco do mal e fogo também.
usávamos o martelo, a retórica e cobiçávamos.
agora que caímos do cavalo tateamos a procura da porta de emergência...
como fugir daquele que nunca dorme
eu/nascido das explosões das constelações/
eu/peregrino explorador de todos os caminhos eu/
avoante sobre o minarete do deserto eu/
guardador de migalhas
eu/a mil milhas distante eu/
embaixo profundo no mais profundo eu/
em cima movendo-se no infinito
eu/urbano eu/indecisão/miragem:
dentro de mim uma floresta riso e paraíso
eu/meio grogue eu/devoto sincero eu/
mistério eu/mais doce
que o desejo de revoada de pássaros eu/fugitivo:
como fugir daquele que nunca dorme?
eu/dobrado eu/orante no fim da tarde eu/
destino eu/espírito meu/palavra eu/
silêncio...
imagem: Eugene Soloviev
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Jair Barbosa (Vitória, ES) é bibliotecário formado pela UFMG. Publicou em 2011 o livro Sobre ventos e sementes (poemas). Tem alguns contos mínimos publicados no Jornal Relevo, de Curitiba, edição de Janeiro de 2013. Está radicado desde 1984 em Belo Horizonte. E-mail para contato.