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Marcelo Labes resenha 2 livros de Tiago D. Oliveira

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Difícil escrever sobre livros de poesia por duas razões: sou também poeta e não domino aquela linguagem altiva com que os críticos costumam elogiar ou depreciar obras literárias. Dadas minhas desculpas, devo dizer que minha relação com a poesia é de gosto. Se gosto, gosto. Se não gosto, tenho certeza que um dia poderei voltar a ele, ao livro, e encontrar ali o que não tive capacidade de encontrar numa primeira leitura. Faz uns dias, me chegaram pelo correio dois livros do baiano Tiago D. de Oliveira. Até esse momento, não tinha lido muito de sua autoria, nem mesmo na rede, pois Tiago aguardava o lançamento de seu segundo livro, “Debaixo do Vazio”, para me enviar também “Distraído”, sua primeira publicação.
Li e reli os dois. Posso então falar do que me fez querer ler mais do Tiago, do que me chocou, do que me fez pensar que não poderia ter terminado 2016 sem ler estes seus dois volumes de poemas.


Distraído



O primeiro livro de poemas de Tiago, publicado pela Pinaúna, em 2015. Corri os olhos pela introdução, li rapidamente a orelha, queria mesmo ir adiante para saber o que este autor escrevia. Distraído tem três momentos: “Pedra de Atiradeira”, “De véspera” e “A nuvem de gafanhotos”. Tiago é vários, no mínimo três, pois cada volume de poemas neste livro pertence a uma voz distinta, dando a entender que a polifonia tematiza e permite que surjam vários poetas.
Aqui, o autor muitas vezes dá toques de linguagem rebuscada, sem ser pedante. Tive de procurar por onde teria andado o poeta antes de publicar seu livro em Salvador: Tiago teve uma temporada Portugal, e venha daí ─ e de suas leituras ­─ este cuidado lapidar com a língua. Mas é em “A nuvem de gafanhotos” que surge o poeta que arrebentará o meu fim de ano, através de seu próximo livro, de que falarei mais adiante.
Gosto da poesia cotidiana, que nos mostra o que ninguém mais, senão o poeta, poderia nos mostrar daquela forma. Os títulos dos poemas dão conta desse ar pedestre, observador de tudo que se passa a sua volta: “Da janela do ônibus”, “Salvador, domingo de manhã”. “Zumbido” transfere para o leitor um incômodo que, como coceira, nos incomoda também:


Há um zumbido
entre os girassóis,
revelia, sob um bater e outro
das asas, há um zumbido.

Abriu a porta, olhou a rua
nada admirado. Voltou,
pensou – há um zumbido.


Em “A rua”, o poeta-voyeur observa do prédio, contempla e poetiza a vista:

Do segundo andar, vejo peças embaralhadas
à espera de um tropeço.

Os metros que nos separam
permitem o papel, a caneta.

Somos partes de uma imagem,
a bunda, as coxas, os seios.

Quando debruço-me na janela,
a contemplá-la, simplesmente

esqueço.




Pergunto-me: por que o poema precisa chegar a algum lugar? Por que não pode simplesmente ignorar as respostas e as perguntas e ser, ele somente, um poema-em-si? É por aqui que anda o Tiago, neste seu “Distraído”. Hora acompanhamos o poeta em suas memórias de infância, hora divagamos em suas reflexões (e o refletir, aqui, é acompanhado da seriedade das mesóclises e afins), mas quando finalmente o poema se permite e simplicidade do caminhante, do observador da janela, é quando o livro mais me toca.


Debaixo do vazio



A leitura do livro anterior escondia, atrás de si, este livro-bomba que é o “Debaixo do Vazio” (Córrego, 2016). Simples, tímido, tem apenas 31 páginas. Mas não nos percamos em preconceitos: são trinta e uma páginas através das quais vamos desmoronando, e quando há tempo para perguntar, entre um suspiro e um susto, perguntamos: o que está acontecendo aqui?
Tiago não espera lamentos do leitor. Não. Com a nudez do poeta ─ senhor poeta, digamos, porque o poeta, aqui, é um ente social ─ o leitor se vê também despido. Somos a nudez do rei enquanto somos expostos, tortos e perturbadoramente tontos, nos poemas que Tiago nos joga na cara e que nos expõe como humanos e bestas ao mesmo tempo.

Em “andamos tão acostumados”:

as linhas dos contornos das coisas
não são só as linhas dos contornos
das coisas. acumulam funções do
sentido que aprendem com o tempo
ele sabe que linhas e contornos
podem até nunca ter se encontrado.
por tatearem os limites já não sabem
do início ou fim, apenas servem
de linhas e contornos das coisas

Em “com os olhos cheios de fumaça”:

é como exercer o desencanto
sobre o desprazer diante do dia,
da incapacidade de levantar da cama,
muda, durante uma vida inteira (a tomar
todos os planos). a fé são os espaços entre
o sono e a falta dele (somos ela, a cama).
as propagandas de tv dizem que 1/3 da vida
você passa sobre ela (o resto, a desejá-la),
como abrir ou fechar os olhos na fumaça

E assim “Debaixo do vazio” segue, atual e hermeticamente calculado. Não com aquele hermetismo batido que quase sempre procura esconder um autor imaturo. O hermético, em Tiago, é como um favor que o autor nos faz: dissesse tudo, não sobraria nenhum de nós para contar como foi passar pelas páginas-obstáculos deste livro.
Entre porrada e outra, Tiago reflete com seriedade sobre os pedais de sua bicicleta passeante. Mas duram pouco os passeios. Já o autor retorna com “você não consegue sentir duas dores ao mesmo tempo, uma anula a outra” ou, e aqui seria a hora perfeita para desistir desta leitura, leitor fraco que sou, o poema sem título que discorre sobre como somos, leitores, humanos, tão coitados, emocionados por redes sociais e manchetes de jornal e ignorantes da realidade que não passa nas telas de nossos celulares e televisões.
As experimentações de Tiago, às vezes, parecem ir longe demais. Como em “anúncios”, uma série de poemas com epígrafes de Marx, Paul Celan e Manuel Bandeira. São anúncios ou denúncias? Tiago não responde, deixando ao leitor, entre a angústia do novo e o constrangimento da bricolagem sorrateira que nos põe ao mesmo tempo como cúmplices e vítimas de uma leitura crítica da sociedade e, por que não?,do próprio fazer poético.
O poema-tema que lemos na contracapa me faz pensar na relação do poeta com seu livro, na minha relação de leitor ao ler Tiago D. Oliveira e no meu próprio fazer poético (porque escrever sem se perder em reflexões sobre o próprio texto, simplesmente não me faz sentido), e termino este meu texto com ele:

deus morreu,
o rei foi decapitado.
mesmo que tudo volte
a ser como antes,
nada voltará a ser

como antes, nada. 



Marcelo Labes tem 32 anos e é natural de Blumenau-SC. Autor de Falações(EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Hemisfério Sul, 2015), O Filho da Empregada (Hemisfério Sul, 2016) e Trapaça (Oito e Meio, 2016). Poeta, prefere o simples ao hermético. Escritor, prefere ainda a poesia à prosa. Costuma conviver mais entre palavras do que entre pessoas.

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