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Susana Soares Pinto | Obturador de sentidos | http://users.fba.up.pt/~lap09093/pendulum/?attachment_id=1083 |
neolib
/por Nuno Rau/
estou no coração do centro da cidade do rio de janeiro.
ando pela avenida atordoado com meus desejos
de classe e converso com um desconhecido
amigo que trabalha em frente à mesma
janela de onde vejo a torre órfã de uma igreja
em cujo topo uma mulher pisa a orbe
diminuta como são diminutos os meus sonhos
de classe mediados por páginas que querem que eu
veja as coisas como as coisas realmente são
do jeito que nelas aparece sob a fina membrana
ou névoa que a tudo envolve enquanto salta
do papel um sorriso platinado e úmido
que me desvia os sentidos do medo que sinto
que da curva abrupta da próxima esquina
pulem na minha frente os meus pesadelos
de classe na forma de garotos armados
até os dentes cariados que entopem bocas
falando dialetos que não entendo e empunhando
lâminas pra riscar a verdade bem fundo
em minha carne.
se bem me lembro era um mês de junho quando
nesta mesma avenida assisti descerem de carros
alegóricos da polícia militar elementos à paisana
que se infiltraram na multidão fortemente armada
de flores e palavras - eles traziam máscaras
ninja escondidas nos bolsos e outros apetrechos
para insuflar a massa em direção às brigadas
fardadas e alinhadas atrás de escudos em todas
as rotas de fuga portando amplos estoques de balas
de borracha e sprays de gás de pimenta adquiridos
pela alocação de recursos que custam o massacre
da educação dos garotos que saltam do meu pesadelo
de classe para as casas de detenção enquanto aspiram
o vapor azul cobalto do crack antes de empunharem
armas brancas que são espelhos dançando
na frente de meus olhos numa hora em que a membrana
invisível não me protege.
paro na frente da banca de revistas com meu interesse
na cotação de hoje das ações da empresa estatal
que despencaram inacreditavelmente pensando
em comprar um substancial lote delas porque lastreadas
na imensa riqueza nacional que também é dos garotos
que no meu pesadelo interpretam o papel de feras
filhas de um massacre e penso a vida virou um drama
burguês de quinta categoriaenquanto as imagens
do papel jornal mostram a cara de um servidor
do sistema democraticamente eleito pelos cidadãos
de outra cidade que exibe seu sorriso
blindado e sem cáries afirmando ser preciso virar
a página do massacre do bom senso e da educação
porque tudo não passa de agitação de elementos
infiltrados que tornaram imprescindível o uso
da repressão violenta do aparelho de Estado
governado por sua pessoa acessível e aberta
pelo diálogo armado de valores éticos e cristãos
que estão aí para combater a intolerância de quem
se manifesta contra o massacre da educação
do garotos da esquina que meus projetos
de classe querem mandar mais cedo para trás
das grades que protegem meus melhores
anseios democráticos.
a noite alcança a cidade maravilhosa.
minha fé se desloca entre os abismos das palavras:
assim como tudo um dia espero emudecer
e não gosto de versos de circunstância (não faças
versos sobre acontecimentos, ele disse) como
também quase sempre não gosto quando poesia
e política se amam muito abertamente – mas
espero emudecer
espero emudecer enquanto
meu corpo inteiro pensa: cinquenta anos
e nenhum
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Este poema integrou a Antologia Poética 29 de Abril O Verso da Violência, da Editora Patuá.
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Este poema integrou a Antologia Poética 29 de Abril O Verso da Violência, da Editora Patuá.