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DIÁRIO DE IMAGENS
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Horas da alma nua
Essas horas sem refúgio, da alma nua, que somos chamados a viver sozinhos: a hora da concentração antes do salto artístico, a da espera envelopada em avental na sala de anestesia, a hora contra o muro ou de joelhos em frente a uma boca de abismo, a do banco de tribunal enquanto tarda o veredicto, as horas enquanto tardam todos os veredictos.
IANELLI, Mariana – Foto
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Novo amor
Meu novo amor ainda não sabe balbuciar palavra. Exige-me tempo, quer meu pensamento. Pode se quebrar num tropeço, é assustadoramente frágil. Impede-me os vícios, disciplina-me à força, esgarça-me. Remaneja todas as minhas prioridades. Ancora em vigilância minhas deambulações mentais. Transmuda-me alma e corpo. Apaixona-me. Não tem piedade.
IANELLI, Mariana – Foto
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Lorca
Seu nome aparece em canções de poetas do mundo inteiro. Por ele continuam a se abrir flores de sangue em canteiros onde ainda é amável a lua, um serafim, uma oliveira. Lorca é um nome contra o qual nada pode a fome das valas e dos fuzis. Lorca é um céu sobre as ossadas, uma ideia de resistência apaixonada, um poder de pássaro nas palavras, uma louca fé de algemas rompidas. Lorca é uma vida de mil estrelas de fogo, bandolins, cigarras e veredas, girassóis, laranjas e auroras em olhos de mil novecentos e trinta e seis. Lorca é o uivo de um cão que não sabe nem nunca aprende a morrer.
GARCIA LORCA, Federico – Lemons
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Cerimonial do banho
Pierre Bonnard, que circunscrevia em suas telas a nudez da mulher Marthe, que pintava Marthe numa banheira, vista de cima e através da água, Marthe de costas, nua contra a luz, refletida num espelho, Marthe de frente, agachada numa bacia, Pierre Bonnard propositalmente deixou faltando a essas pinturas o rosto do corpo de sua mulher. Como se sempre algo num banho se negasse a ser revelado. Como se sempre algo num banho fosse assunto apenas entre uma alma e a água.
BONNARD, Pierre – Nu a contre jour
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Giacometti
Houve uma vez esse artista, cujos retratosjamais terminavam. Faltava ao desenho de umrostoseurostodefinitivo, porisso o artista sempre recomeçava, maisderreadopelopeso da modéstia do que por cansaço, e se martirizava de imprimir na tela o vago rastro de um amadurecimento queapenas seria perfeito se umdia a tela se convertesse num sudário. A interrupção da obra dava ao mestre a guarda do segredo da humildade.
GIACOMETTI, Alberto – Caroline, 1961
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Eugène Boudin
Alegria de espetar um guarda-sol na areia e, com olhos azuis, correr o céu. As cores do momento eram o mais importante, a efemeridade do aspecto das nuvens, a luz através delas. Boudin usava materiais diversos, carvão, guache, pastel, aquarela, óleo sobre papel. Aprendia com a natureza a espontaneidade do esboço, a motivação da hora, a luz da aurora, a luz do crepúsculo, coisas que um ateliê não podia dar com o mesmo vigor nem a mesma verdade de um trabalho ao ar livre. Anotava a data, a hora e o vento do instante do seu esboço. Instalava-se entre o poema e a narrativa de um dia.
BOUDIN, Eugène – Ciel strié gris
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Onde estão?
Continuam juntos noivo e noiva que posavam para uma fotografia em Ouro Preto, sob o arco de passagem entre duas ruas? E o menino no colo da mãe, que lhe gritava em plena feira de domingo que não deixaria de amá-la nunca? Será que ainda sente assim? Será que ainda diz seu amor à mãe em alto som? E o homem de rosto em pergaminho, com seus olhos sagrados sobre as águas através do janelão do velho bar? Será que ainda conta para os visitantes de Laguna sobre o dia em que uma baleia veio encalhar ali, onde seus olhos ainda vogam? Onde batem hoje esses corações? Ou será que já não batem? Onde estão?
IANELLI, Mariana – Foto
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Outubro
Outubro, outubro, quantas coisas em seu azul já se passaram. Um beijo adolescente enlouquecendo o tempo ao pé da escada de um pátio, azul marinho, um piano velho tocado com paixão, uma piscina cheia de velas flutuantes, azul marinho, um filho se desenhando no escuro, o cheiro nauseante de uns lírios, uma notícia de traumatizar o ouvido sempre que soa o telefone, outubro, outubro, azul marinho, o fulminante nascimento de um anjo.
IANELLI, Mariana – Foto
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Mosaico de sonhos
Um caminho estreito até um lago imenso com pensamento lento de pântano. Corredores de um hospital abandonado. O verde musgo de um cemitério mínimo, escarpado e úmido. Um templo japonês no alto de uma rocha. O corpo encaixado numa cova. Numa tarde nítida a nítida voz da bisavó. Um labirinto de escadas de madeira velha até um sótão e no sótão um orgasmo. Um passeio à noite na neve, a neve iluminada na noite. Um voo sem asas, só de bater os braços, sobre telhados. Um voo baixo sobre um jardim de esculturas.
IANELLI, Mariana – Foto
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Família vende tudo
Um relógio de pêndulo e sua sombra, um piano com candelabros, uma edição autografada da primeira parte de O tempo e o vento, um cristo sem braços, um bandolim, tudo à venda por um pouco de vazio, por um respiro na arquitetura externa, para despistar a guarda dos fantasmas e suas viciadas exigências, para dar espaço à lembrança de outras coisas, outros livros, outros pêndulos, como se abrissem a barriga de uma baleia, sem pensar mais no que trouxe essa baleia à praia, arpão de caçador, corrente do mar, ou só uma tristeza profunda, ou só a velhice, sem pensar mais se essa baleia já desembocou morta ou se foi morrendo aos poucos, querendo voltar, relutando, uma vitrola do tempo das netas ainda meninas, mais uma coleção de discos raros, aldravas de leão dos portões da casa, azulejos portugueses, tudo à venda, zerando indícios de uma agonia lenta, passando uma rasteira no tempo, um quadro de Bonadei, uma gravura de Charoux, uma santa em madeira entalhada, um pássaro branco de mármore, um dente da baleia.
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CHAROUX, Lothar - Linhas
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Mariana Ianelli, nascida em São Paulo, é autora dos livros de poesia “Trajetória de antes” (1999), “Duas chagas” (2001), “Passagens” (2003), “Fazer silêncio” (2005), “Almádena” (2007), “Treva alvorada” (2010) e “O amor e depois” (2012), todos pela editora Iluminuras. No ensaio, é autora de “Alberto Pucheu por Mariana Ianelli” (2013), da coleção Ciranda da Poesia, pela editora UERJ. Estreou na crônica com o livro “Breves anotações sobre um tigre” (2013),pela editoraardotempo, que também publicou seu mais novo livro de poesia, “Tempo de voltar” (2016). Recebeu o prêmio Fundação Bunge de Literatura (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude, menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas (Cuba) pelo livro “Treva alvorada” e foi três vezes finalista do Jabuti, com os livros “Fazer silêncio”, “Almádena” e “O amor e depois”. Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, França, Hungria, Cuba e Argentina.
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