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Sobre gravuras e ocupações - Abiatar Machado

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do diário de um pintor

sou odiado pelos não pintores
um ódio que se ilude devagar
pois aqui na efêmera eternidade da tinta
todo mundo se acredita eterno.
pois bem, primeiramente é preciso
costurar os dedos na beira do in-costume
morrer deliberadamente
como se não houvesse nenhum eu
ou eus subindo as escadas.
vou me extraviando no ato de pintar
melhor seria recuar até o fundo do chão
e encontrar um cão
melhor seria amadurecer os dias
como se eles não fossem
os dias para alguém
pois no fundo não são.
melhor seria que você me ouvisse
alvorecendo na sua nuca...
ah, meu bem, a tinta enraizou
meu sexo nas têmporas do nada.
agora estou assim, escorrendo.
fiz um pequeno caderno rasurado
estalando milhares de vezes.



Canção incerta

ai, ai, ai!

uma canção incerta e febril
murmura na pele macia da dama?
nos raios meninos do sol?

de repente te desenho nas calçadas
e nas paredes das casas
a paisagem do desenho é fria

– restos de janela
doendo nas calçadas –

a incompletude do ser lambe o redemoinho
uma solidão esmaga os remendos

– a parede remendada, os olhos remendados,
como se fossem um corte na espessura do tempo
ou um buraco na epiderme de um cão –

desenho dos desenhos!

o turista do tempo lampeja
e passeia pela rua dos bancos?
o turista do tempo desenha

desenho dos desenhos, meu bem?

possuído pela relutância das pedras
começo a cantar suas mãos de criança

mas como pensar um poema nesse dia
em que esqueço meus cigarros na rua?
como escrever uma frase que se torne um verso
se estou cansado, me arrastando,
desejando um caderno
e um beijo desenhado com nanquim?
como descobrir o ritmo se as pedras são falsas
e o desenho me escapa?

descubro lentamente rasgo lentamente
corro quase solenemente dentro da palavras
depois encontro dois jardins na porta do cinema
e não converso sobre o menino
vivendo meu retrato no espelho
apenas corro e brinco
como se um raminho crescesse



exposição

seus primeiros quadros
e alguns desenhos que ele fez
para o fervoroso inferno de dante
experimentei um dia
em livros de história e literatura

pendurados estavam
em uma galeria
de ouro preto

pude visitá-la
alguns anos mais tarde

era mais que uma galeria
(lugar de expor
coisas belas) um espaço sem enfeites
emparedado para os olhos
para a luz e para a tortura
de não ser tocado por tinta alguma

antes de ir para a exposição
resolvi ficar dias exposto  – sim
exposto – e sem dormir

o corpo em estado de sonho

entre os turistas verborrágicos
murmurei uma canção de pietro gori
enquanto o corpo de dante fervia

os desenhos eram como
um rio de fogo escorrendo de um anjo
peixes reverberando o ser e a morte
– uma casa estrangeira
vertiginosamente acolhedora
em que era possível descansar
e rabiscar um poema

seus primeiros quadros nos livros
são ainda a lembrança
de um mundo encastelado e febril

depois soube que ele escreveu
um romance sobre castelos
cavaleiros tragédias e cuspe




Sobre gravuras e ocupações

Lorca foi fuzilado.
Dali chorou escondido
nunca escreveu sobre o fato
nem mesmo pintou um delírio
em que tentasse entender
os muros que o separavam de Lorca.
apenas guardou as cinzas
desse primeiro amor
em um quadro pintado para o poeta.

Lorca era um meteoro
vestido com o vento
encarnando avant la lettre
todas as canções
escritas por Violeta Parra.

Dali era um medonho cão aristocrata
uma extravagância nas novelas da arte.

mas o Dali interpretando Dante
através do desenho era algo mais.
nunca consegui escapar
do alcance misterioso daqueles traços
e de sua atração pelo inferno de Dante.

Dali não gostava de Lorca
gostava do beijo quente do poeta.

Dali sempre esteve antenado com a superfície
e seus quadros se tornaram essa imitação da arte
que as galerias e o dinheiro adoram.
mas nunca vi superficialidade tão profunda
aparecendo em tinta.

nunca senti tanta tesão por um método de estudo
como senti pelo método crítico paranoico de Dali.
sempre fui dado a amar extravagâncias, deve ser isso!

no entanto, me perturbo mais com Lorca
com sua morte esperada
com sua coragem de dizer não ao fascismo.
Oh Dali de voz azeitonada
de voz amedrontada
de olhos cinicamente fugazes
não o culpo por amar o dinheiro
os seres humanos amam coisas idiotas.

enquanto você fodia sua arte por grana
Lorca trepava com a revolução.

mas por que escrevo sobre você e Lorca
nesse dia em que estudantes
estão ocupando universidades escolas e ruas
para escapar da mesmidade da política
e acabar com a sujeira dos governos?

por que tento usar Dali e Lorca
para elogiar a beleza dessas tempestades?





Abiatar David de Souza Machadoé de Caratinga-MG. Mestre em estética e filosofia da arte UFOP. Atualmente faz doutorado em filosofia na UFMG.

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