orquídeas, peônias e xícaras de agorafobia
Nenhum leitor sai ileso do encontro com um livro da poeta Priscila Merizzio. A essa altura, certamente, quem me lê já o sabe. Posso imaginar olhos brilhantes de impacto, corações disparados, como os de quem sobrevive a um thriller, à montanha-russa. A poesia de Priscila mescla delicadeza e violência com expertise. O resultado é a originalidade, germinando em vasto domínio vocabular.
Ardiduras dá sequência ao caminho desbravado por Minimoabismo(São Paulo: Patuá, 2014), o primeiro de seus livros, semifinalista do Prêmio Oceanos de 2015. Note-se a singularidade dos dois títulos, a mesma que forja a tessitura de cada um dos poemas que contêm. Agora, em novo trabalho, a inicial dedicatória, sutilmente, prepara o espírito dos leitores peregrinos: “aos desvairados que fizeram / seu caminho, vertiginosa / belamente”! E firma o tom na epígrafe da primeira parte do livro (“candeeiros d’água”), tomando verso de um Manoel de Barros às voltas com “osso”, “fala” e “lírios”.
Ardiduras, ardências são signos do efeito que a poesia deve gerar. São o ambiente escolhido pela poeta para o exercício de sua arte. O incômodo, o embaraço, o belo e o feio, transfigurados em palavras, estão sob a mira da escrita de Priscila. O eu-lírico sente em seu crânio “uma revoada de pássaros”, os “crisântemos”não o “deixam esquecer a dor da terra”. Os versos talvez possam “abrandar o caos / que vem da placenta”, mas, ao mesmo tempo, desmentem a paz presumida na proteção uterina.
Esta poesia não escolhe ninhos. Uma pequena fagulha será um poema. A fagulha detonará vulcões, que também serão poemas. Priscila caminha por diferentes florestas, desertos, astros, nesse tempo veloz e evanescente, e vai recolhendo flashesde vida, descrevendo-os com sensualidade, ódio, deleite, amor e energia.
E assim é configurado o mundo em Ardiduras: “xícaras de agorafobia” são oferecidas ao lado de orquídeas e peônias. Afinal, é desse modo que se respira, com a epifania e com o medo, pulsões de vida e de morte:
“morrer de mãos dadas com você seria peônia
mas não desejaríamos o fim
viveríamos isolados em alguma
prainha da Bahia
a beleza da juventude quebraria
sem culpa as catacumbas
nossos olhos brilhariam candelabros
como 15 mil satélites naturais
auxiliando a fotossíntese das damas-da-noite
a ovulação das tartarugas marinhas”
Impressiona a versatilidade de imagens que a poeta reúne. Força e pétala estão em seu genoma. No instante em que as “réstias incandescem” (segunda parte do livro), a voz poética admite que a solidão pode ser “pluma na relva” e antevê a possibilidade de superação pelo engolir de “sóis do planeta novo”. Não mais a culpa “por ter mastigado / o mundo como uma planta doce e calmante”. O verso de Priscila é vário, assume rotações e translações, recusa a estática.
O sol, em sua obra, remarque-se, não será esfera banal, em laranja de cera, mas iluminará, igualmente, as “necrópoles”, porá “para dormir pianos de cauda / marinheiros homossexuais”, queimará “os cantores / de folk”, testemunhará o aparecimento dos anjos antes de amanhecer e um beijo na “face esquerda”, como é a sua vocação de potestade estelar, como convivem atrocidades e delicadezas no ar, no calendário, no mais fundo de uma flor capturada em fatia por Georgia O'Keeffe e nos poemas de Priscila Merizzio.
“Florestas de gérberas” — desdobram-se as Ardiduras pela terceira vez — saberão o sagrado e o profano em “pontes derribadas no / Rio Jordão”, nos fluidos que se mixam sob o chuveiro, arquivadas “orações, medalhas religiosas”, “santos de gesso”, “rosários de contas grandes / feitos de macadâmia”. A personagem lírica, sóbria de “lítio com vodca”, experimenta, religiosa e intensamente, o amor com iguais profundidade, lamento e superação: “ressona um leão / lambendo as esporas / de meus olhos que tilintam / fugas”.
Essa amorosa personagem atravessará círculos e se dará em martírio e renascimento, na quarta de suas paragens (“excruciāre hummus”), quando visita o Eclesiastes e recebe a admoestação para contrapor alegria e treva. Assim surge um “beija-flor hipertenso”, um mensageiro dúbio, coberto de penas luminescentes e repleto de vibrante tensão interior. O eu-lírico, ainda uma vez mutável, sabe dor e redenção:
“língua queimada por cigarros
lambe meu queixo
— a fé restaurada nos homens —
e me conduz fraternalmente ao sol”
O livro ruma para o epílogo de “embaralhamentos”. Do alto das escarpas, agora se vê que “morrer não é o fim”; é “arrumar a cama em um lugar que nenhum / morador da Terra sabe que existe”. No epicentro dramático do universo, possivelmente condenado a ruir (“as lâmpadas estão queimadas nos abajures e há anos ninguém as troca”), a poesia abre trincheiras de esperança (“a boneca pode se pendurar como um Tarzan e fazer da saboneteira seu barco e dos cotonetes, remos”).
Ardiduras, como escreve Octavio Paz, “revela este mundo; cria outro”. Retalhos de cores vibrantes, de diferentes tecidos, são alinhavados pela poeta e deixados à mão do leitor, que, em estranhamento, apreenderá os poemas e construirá os próprios — um poema sempre se completa, liberto de seu criador, sob as idiossincrasias de quem o lê. Priscila Merizzio faz de sua linguagem, é visível, razão de sobrevivência. Os sentidos são metamorfoseados em movimento, revolução, espera, misticismo, denúncia, explosão.
Sob a respiração apressada de quem os leu a todos, os poemas cessarão sua voz (thriller, montanha-russa?). Nos créditos mentais, anjos, flores, rugidos, Madame Bovary e o leitor mergulham no caleidoscópio criado pela poeta em suas intensas “ardiduras”. É tempo de pausa. Sim. Não há alívio nos poemas de Priscila Merizzio. A beleza, em seu horizonte, revoa em vertigens. E estávamos avisados. Desde o início.
Alberto Bresciani
Abril, 2016.