GIA
eles capturaram uma mulher tão linda quanto um sol
uma mulher com dentes refletindo no escuro
uma mulher de cabelos rasgados de vento
e na voz dessa mulher o som desconhecido
de uma palavra selvagem numa jaula
que mulher rara e que olhos estranhos:
colocaram-na num pedestal e lhe deram asas
forjaram para seu corpo uma armadura e um escudo
amarraram sapatos de chumbo aos seus pés
multidões e multidões queriam ver o seu rosto
e elegeram que essa mulher seria do mundo
uma mulher capaz de causar um surto
de tocar os sujos e torná-los fecundos
uma mulher de pó e de sonho
de agulhas fiadas por todos os poros
com amores esperando o ritual da foice
contra o seu sexo um leão que afronta
de encontro a sua alegria a planta carnívora
e perceberam um dia que ela não tinha mais luz
cortaram-lhe os cabelos e os seios
jogaram maldições e feitiços em seu útero
acenderam fogueiras para afastá-la da vida
quebraram espelhos e tudo que pudesse refletir
a sombra e o nome dessa mulher sem mundo
DALLESANDRO
um minuto de teu dia e a vida estaria ganha
atravessaria um peixe pelos teus olhos e o animal incendiaria
salivas e neons numa metamorfose de inseto sobre sílex
ferrugem num bagaço emaranhado de medusas
e o mineral deflorado sobre os brinquedos
atravessaria um peixe pelos teus olhos e o animal incendiaria
salivas e neons numa metamorfose de inseto sobre sílex
ferrugem num bagaço emaranhado de medusas
e o mineral deflorado sobre os brinquedos
sofresse tanto e não sofresse em vão
este vácuo onde trepam os fumantes na contraluz
um interior de corpo tecendo texturas de ânus
noite fresca de veludo musgoso no canto da boca
traz dentro de si um asfalto e acúmulo de gasolinas
não fosse homem e seria apenas anjo no labirinto
este vácuo onde trepam os fumantes na contraluz
um interior de corpo tecendo texturas de ânus
noite fresca de veludo musgoso no canto da boca
traz dentro de si um asfalto e acúmulo de gasolinas
não fosse homem e seria apenas anjo no labirinto
noite florescente de animais babando pirolitos
pássaro apagado numa brancura de lâminas
estampidos de chocolates colados à mão
liquefeito e sorvido dentro de abrigos e paredões
não fosse homem e seria uma flor no intestino
rumorejando grânulos de sêmen pela língua
pássaro apagado numa brancura de lâminas
estampidos de chocolates colados à mão
liquefeito e sorvido dentro de abrigos e paredões
não fosse homem e seria uma flor no intestino
rumorejando grânulos de sêmen pela língua
um minuto de tua noite e o oceano deitaria
o riso despido pelos putos cabelos loiros
uma delicadeza rara de sangue nas palavras
tagarelice de atores acertando presságio e golpe
o desejo ganindo um bafo no esconderijo
o riso despido pelos putos cabelos loiros
uma delicadeza rara de sangue nas palavras
tagarelice de atores acertando presságio e golpe
o desejo ganindo um bafo no esconderijo
FUGALAÇA
vamos supor que um homem conheça outro homem
e juntos eles construam uma casa
e projetem móveis para resistirem
aos arrastões de espermas e riscos de lápis
em coxas torneadas de correrem por esquinas
vamos supor que dois homens criem um gato
e o gato não tenha o rabo e uma das patas
são tantas bichas bonitas no mundo
são tantos pés sujos esperando serem lavados
com água morna saliva boa e sal
são tantas pérolas se perdendo pelas rotas
de uma orgia clandestina e os cílios curtos
vamos supor que um homem engole outro homem
e guarde a fumaça do hálito dentro da gaveta
e quebre as duchas dos bares lotados e a sudorese
que não caberá nos colchões amarfanhados
vamos supor que dois homens queimem as sandálias
e decidam que suas respirações serão como rastros
vamos supor que pelas ruas homens quadrados rotundos
sejam enfermeiros fotografando um poema num buraco
vamos supor que hajam homens como jogadores
a traficarem sangue de narcisos entre pensões
em são paulo canindé campo belo paragominas
homens negros brancos índios arrochados
apanhados de surpresa na ereção das santidades
mágicos ladrões vendedores hipnotizadores mendigos
vamos supor que um homem conheça outro homem
numa cidade subterrânea ou num asilo psiquiátrico
nos subúrbios nos cubículos noturnos nas guerrilhas
nas filas de distribuição de drogas injetáveis e inaláveis
vamos supor que em algum momento naquele momento
uma luz acenda nos rostos a madrugada
Flavio Caamaña é um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Literário Ideal Clube De Literatura, participou de coletâneas em livros e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas Aquedutos (PATUÁ, 2016).