Imagem: Fernando José Karl
A BARCA DE CRISTAL
Sei que adubo a neblina ao nevar na neblina
a casca de um pensamento.
Se com afiada faca degolo a garganta do pensamento,
do corte fogem músicas em bando.
Ligo o rádio, amasso o pão, cultivo plantas fumegantes
no tombadilho da barca de cristal que nasce da noite escurenta.
Da amurada da barca de cristal,
contemplo a solidão das baleias narvais que afundam.
Já morri, eu sei, mas ficou de mim, nas tábuas do convés,
o sopro de uma sombra cansada de ser sombra.
Após algum tempo,
até a sombra da barca de cristal torna-se um cristal.
E a colmeia se ampliando na piscina angulosa da retina.
JAZZ HIDRÁULICO EM CORINTO
(Ka'a sí'ijil t'an: voltar a nascer a voz)
De novo me entrelaço aos ossos que são relâmpagos
naquela noite escura que eu chamo de meu corpo.
De novo volta a nascer a palavra
guiada pelo astrolábio da agulha de marear.
O labirinto flui incessante jazz hidráulico em Corinto,
e dentro de nós o frescor da água no barro da garganta.
Nos aquários que respiram na parte mais funda dos oceanos,
sorvo um jarro d'água
em nome do coração das mulheres vulcânicas.
Parado na luz,
o vento lê o meu futuro nas folhas de chá.
Porque te amo,
naquele recanto abandonado dos fiordes
eu deito na cama entre fevereiro e inverno.
Porque sem ti não consigo respirar,
observo na cozinha o besouro no prato branco
que sonha seu inútil sonho de ser,
algum dia,
um golfinho.
O GANZÁ DAS RÁFAGAS
O túmulo, como um cão raivoso, se esmera em acossar
o instante de lucidez de Cavaal de la Bruta que,
mesmo caindo no abismo,
não esquece de se lavar com sabão de erva fina e água de cheiro.
Enquanto despenca no abismo,
Cavaal de la Bruta pensa num modo prático de aperfeiçoar o ganzá das ráfagas,
e reza no terço para que a secura dos cascalhos diminua.
Durante sua queda no abismo,
Cavaal de la Bruta sorve o chá verde da xícara de porcelana,
entoa na garganta o manso croar das rãs,
escuta os rudimentos do suntuoso vendaval nas folhas das palmeiras.
Cada vez mais próximo do chão,
Cavaal de la Bruta baixa as pálpebras para não ver o baque nas pedras:
de olhos fechados, Cavaal de la Bruta substitui
a palavra baque pela palavra chuva.
O ZANGÃO
Se o leitor de um texto nada mais é que um cisne tenebroso,
eu não quero ser o Rei dos Mortos,
mas, como disse Aquiles a Odisseu,
quero ser o pastor mais pobre da terra.
Se o caqui é tão intenso quanto o Arraial do Cabo
e o zangão
tão surpreendente quanto o mel,
se o pente de tartaruga é tão intenso quanto as escamas do lagarto
e a fronha do travesseiro
tão surpreendente quanto as lianas do bosque,
se o búfalo é tão intenso quanto o véu de Ísis
e a cópula furiosa dos galgos de El Greco
tão surpreendente quanto o Convento das Carmelitas Descalças,
se o único desejo é ser – não eterno –
mas a música de um grafismo de Paul Klee,
só me resta acrescentar aqui
o texto de Jorge Luis Borges citando Enrique Banchs,
num ensaio sobre Gôngora:
“Como é seu dever mágico dão flores as árvores”.
Todas as coisas foram feitas por meio da palavra,
e, sem a palavra, coisa alguma foi feita de quanto existe.
Visto por esse ângulo, também foram feitas por meio da palavra
as coisas a seguir: xícara, aqueduto, quartzo, baleia azul, prego, abismo, avenca, arroz, Confúcio, Hitler, mel, urina, música de Bach, veneno da mamba negra, violoncelo, calabouço, biombo, água, Taj Mahal, fezes, ácaro, gânglios, latrina, termas de Caracalla, o peixe Capelo (Synaptura lusitanica), o aquoso das plantas, manta de algodão, chá do Ceilão, mantras de Aruanda,
arrozais da China, hieróglifos, um lápis na península, cachaça, a voz da Sibila.
A palavra nunca se reduz a um bibelô de inanidade sonora,
porque a palavra deseja sempre ser a carne
daquilo que está sendo pronunciado.
A voz da Sibila
toca o vento
para tocar o meu ouvido.
Fernando José Karl (Joinville/SC) é autor, entre outros, dos livros “Teares de pedra” (Prêmio Emílio Moura/MG/1992); “Diário Estrangeiro” (Prêmio Cruz e Sousa/1996/); “Travesseiro de Pedra” (Prêmio Cruz e Sousa 1997); “Breviário” (Prêmio da Biblioteca Nacional/RJ /2001); “Brisa em Bizâncio” (Travessa dos Editores/2002); “O livro perdido de Baroque Marina” (Prêmio Cruz e Sousa 2010/Categoria Romance) e “Casa de água” (25 anos de poesia, 2009). Em parceria com o cineasta Alceu Bett fez os roteiros para os filmes de “As mortes de Lucana” (2013), “O aquário de Antígona” (2016) e “O voyeur” (2016). No facebook publica “O elixir das linhas”, um acervo com seus desenhos e pinturas