Algo sobre mim e sobre “Santiago”
Primeiro uma música dolente, depois um movimento lento à 3 fotografias. Uma cadeira solitária na varanda. Em preto e branco a lente passeia com vagar pelo espaço: é um jardim. Este é o primeiro plano do filme. Há uma velha máquina de escrever sobre uma mesa. Uma viagem à Itália em 1925. Meu primeiro movimento de montagem. Fantasmas insepultos no quarto. Um casal valsando. Dois sacos plásticos voando no ar como em "Beleza Americana". Um trem que voa como as vacas de Chagall. Um homem de fraque tocando Beethoven ao piano. Aquele meu primeiro amor. O mar que não sei explicar. O mar não se explica, nem se compreende. Uma reza em latim. Take 2. Se as luzes voassem no inverno eu seria um príncipe. O jardim como uma obsessão doentia. Chovem agulhas. A câmera fecha em close. Ouve-se ao fundo o barbeiro de Sevilha. O casal continua valsando. Uma fascinação rubra. Um poente. Guardanapo embebido em álcool e cânfora. No meio do escuro o caos. Farfalhar de outono. Pernas de mulheres que passam. e passam. Folhas. Avança a câmera pela casa. O grande relógio calado. O lugar do colibri que urra. A valsa. Em preto e branco as cores são mais nítidas. (CRIANÇAS BRINCANDO NO JARDIM). A palavra escorre menos quando se escreve devagar. A casa. Telhados penteados de lado. Paredes quietas e silenciosas em calmo desespero. Grito mudo. Gostava de dançar ao som do silêncio que há em toda música. Quando se dança,se dança mais do que simplesmente o corpo que dança:dança-se a alma que dança. Artista de cinema mudo. Pequeno e tenro recorte de revista. A sedução da casa que dança no silêncio em preto e branco da valsa. Necessário filmar a dança das mãos em dois longos planos. Descrever o sutil e suave movimento das mãos no escuro. Tato. Balé de borboletas e fragrância de infinito. No delicado caos estrela bailarina. Fiz vários planos iguais a este. No terceiro plano uma folha cai no fundo de um quadro. Sem exagerar o suor do boxeador. O corredor move-se. A terra move-se. O plano vai calmamente acentuando o prodígio da face. Mãos florescem. Minha memória de mil anos. O quarto mergulhado no tempo. Vê-se o quarto ainda. Sonhei que pertencia à fantasia. Hoje pensei em flores. O quarto valsando. Um vaso em máscara. Nem o luar foi tão sério como esta fantasia. Horas esquecidas e calvas. O marfim do sudoeste da varanda. O piano. A grama. Sol íngreme e notório. A luz do poste que dança mulher em orquestra. Francesca no segundo círculo do inferno.
Eternamente. Papéis e páginas. Vento varrendo a vida. O movimento das páginas. O vento. Restos de milhares de histórias. Alguém abdicou do trono outro fundou um reino. Em algum lugar um crepúsculo em hermosura. Maria de Sabóia cuja beleza deslumbrou Lisboa. Estamos na canção do outono. Dias breves. Aumentando o cristal da lente. Não entender é tudo o que vale a pena. O matiz azulado entre a caminhada e a dança. Voltar à casa. Retomar o filme. Plantar as cinzas no orvalho. Silêncio.
PS: Texto escrito como rasura do filme “Santiago” de João Moreira Salles.
Elementos para a composição de um estado de névoa e poesia
Jogo xadrez no caos dentro de um quadro de De Chirico. Beijos geométricos se desfazem como as areias vermelhas. O movimento é um diálogo oblíquo. Te ver nua foi como ver o céu sem nuvens com a sua força de azul a devastar as reticências. Aqueles cavalos alados cavalgaram por vertigens e incongruências de mim mesmo. No peito da noite chove. Chove terrivelmente. A chuva é fina e veludosa sob a luz do poste que estou olhando. O tempo é líquido como a chuva que escorre por meu corpo. O barulho da chuva tem gosto de almíscar. O telefone está tocando. Está tocando desesperadamente há três dias. O som vem de dentro de uma maçã sonâmbula.
Atendo o telefone, espaço de silêncio branco e ouço delicadamente a declamação de um poema:
A
um
poema
declamação de
declamação um poema
poema:
Pássaros de cobre
VOAM
vulcão em erupção
mar de veludo canto de violinos emplumados e sereias líquidas amanhecem a aurora de perfumes delicados no sussurro sibilante de tua leve pelúcia geométrica. Silêncio escuro.
Sons e fúrias e nuances líricas. Helicópteros no céu de néon fazem circunvoluções lúcidas. Qual o gosto de uma palavra? Ana te vejo, e te desejo na cor verde de teus olhos. O vento sopra alucinadamente. Reconhecer-se no azul de tardes insone. Tempestades de areia. Folhas de outono compõem poemas nítidos como girassóis despedaçados. No poema entendo palavras que me dizem mais do que significam, palavras que me afagam o cabelo numa tarde dourada. Sei de todas as formas de desatino e compreendo o êxtase que propiciam. Do crepúsculo jorram amplas auroras do inexplicável. Nas sendas das nuvens vejo veredas: Por acaso o poema precisa de explicação? Por acaso o fato de ser inexplicável não é a sua mais completa explicação?
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José Sérgio Custódio nasceu em Londrina-PR em 1981. Formou-se em Letras pela UEL. Abandonou muitas coisas, mas não a poesia. Sonha em tornar-se livro. Gosta de ver as palavras escorrerem pelo papel. Acredita, que no fundo tudo é imaginação.
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