Carinho
Você engorda. Emagrece. Faz cooper. Matricula-se no inglês. Senta direito. Anda com postura. Come com talher. Bota menos sal no picadinho. Come mais frutas pra cagar molinho e nunca deixa o celular descarregar pra ela não pensar que você está fodendo com outra no horário do almoço. Você exclui os nudes das leitoras. Fala que agora é algo sério para sua melhor amiga de Porto Alegre. Bloqueia os trafica e jura que agora lerá livros mais edificantes como “A história do direito em 12 fascículos”. Você varre o quarto e junta boletos de cobrança e diz pra si mesmo que prosperará. E que talvez vá até à igreja no domingo só para fingir que se emociona com o teatro do pastor ladrão. “viu só? Estou mudando” e ela vira pra você num sábado quente como o cu de Cleópatra virgem e fala: “acho que estou gostando do meu professor de química. Ele faz diferente. Não é brutal como você. Quantas vezes pedi pra você meter com carinho?” então você corre pra sala. Para o esconderijo onde está a arma carregada. Ela ri. Debocha. Caga para seu sofrimento. Você então chora e acerta dois tiros nela. Um em cada joelho. “agora quero ver se ele vai abandonar mulher e filhos pra meter em você com carinho” ela grita. Esperneia na poça de sangue. “Nem aleijada volto pra ti! Seu corno desgraçado!” então outro tiro acerta a cabeça dela. Miolos mancham o quadro falso de Dali. “E agora, Ana? Ele ainda faz com carinho?”
11 de setembro
Lembro que uma senhora trabalhava na minha casa e orava muito. Ela cozinhava orando e às vezes varria a casa lagrimando. Dona Lígia. Nunca esqueço o rosto da dona Ligia. Um rosto de compadecimento com o sofrimento alheio. Uma expressão cansada de esperança num mundo melhor. Eu liguei a televisão e vi o avião acertando a primeira torre e depois outro detonando a segunda. Ela se ajoelhou de cara pra parede e começou a chorar. Começou a pronunciar palavras em línguas estranhas. Fiquei calado. Acho que a fé da dona Ligia me deixava sem palavras. Sem ter o que dizer. Todos os canais de noticias temiam uma terceira guerra mundial e resolvi me trancar e orar também. Não me ajoelhei. Sentei a bunda na beira da cama e comecei a visualizar com força um mundo melhor. O tempo passou. Dona Ligia deixou a nossa casa para trabalhar como cozinheira num hospital do interior. Ficamos 15 anos sem nos ver. Em março fui deixar um amigo que trabalha como professor voluntário num vilarejo do rio amazonas e vejo dona Ligia caminhando em minha direção. O rosto menos amargo. Já envelhecida e contente com o retorno de cristo. “tenho orado por você todos os dias, Diego.” Abracei seu corpo desnutrido e caquético e senti vontade de chorar, mas segurei a onda. O rio na minha frente embalando os barcos. Senti vontade de dizer obrigado. O prenúncio do choro engasgando tudo. A fé de algumas pessoas nunca desmorona. Então toda vez que falam em terrorismo, Bin Laden, bush e estados unidos, lembro-me do cheiro dela limpando a casa. Um cheiro meio brega de perfume barato e esperança.
Frango Assado
É feriado em Manaus. Nada aberto no meu bairro. Então ligo para o frangão assado e peço o almoço: “olá, senhor cliente. Meu nome é patrícia. Como posso ajudá-lo a ser feliz nesta manhã?” “Bom dia, larga tudo e vem tomar uma cerveja comigo” “olá, senhor cliente. Não estou entendendo. Como posso ajudá-lo?” “você é muito doce pra esse emprego. É muito doce pra esse emprego de merda.” “quem está falando? É você, Albertinho?” “Não, é só um cliente observador. Um cara que olha as coisas com atenção. Um escritor.” “olha, se for um colega do Albertinho, diz pra ele pegar as coisas dele na casa da minha mãe. Não moro mais no bairro alvorada” “Não sou o Albertinho. Só queria conversar contigo. O dono do Frangão assado te explora. Você trabalha todos os dias e ganha quanto? Você é bonita e muito educada pra esse ambiente sujo e mesquinho cercado por homens escrotos. O que você ganha dá só pra pagar o aluguel e comprar esmalte pra unhas, não?” “quem é? Não posso mais conversar. Preciso atender clientes.” “sou um covarde. Um cara que te observa faz muito tempo e quer sair contigo. Teu sorriso é tão bonito” “obrigada” “sou aquele cara grandão que de vez em quando passa por aí pra comprar farofa e refrigerante” “ah sim. O poeta, né?” “sim.” “depois a gente se fala, então” tutututu “oi” “você novamente?” “manda um frango assado e uma coca de 2 litros. Troco pra 100. Vamos sair?” “passa aqui 6 horas, poeta”. “você é linda e fez minha manhã feliz, Patricia. Beijos”.
Buraco
Você olha o buraco quase engolindo seu quarto, cama e escrivaninha. Então tira a camisa, tira a bermuda, está calor, manaus é o cu apertadinho e quente de satanás. Você tenta não olhar o buraco, mas ele está lá feito o esqueleto de um dinossauro numa exposição. Fecha os olhos, cochicha algo desconexo e baixinho, faz uma oração, mas ele continua lá quase engolindo seu corpo inteiro. Então você começa a escrever contos, poemas e narrativas longas e áridas feito deserto. O buraco começa a diminuir. Vai fechando. O espaço abrindo. Os azulejos se reconstruindo e o tapete se esticando feito um anjo nonsense dando língua. Você então sorri. Por um instante acredita que fazer literatura fecha buracos e dorme. Fecha os olhos por 12 horas e quando acorda saca que é o próprio buraco gritando a palavra “amor”.
Abandono adestra o cachorro mais louco
Isso rolou antes do carnaval. Não gosto de escrever coisas verdadeiras. Sinto-me jornalista. Escritor que é escritor inventa as coisas. Então ela disse que queria foder. “pago o que você quiser. Pede aí. Quer uma garrafa de uísque?” Eu disse que não estava disposto. Falei de cara que estava com dificuldades em escrever um romance. Que minha mãe tinha pirado e andava sumida por três dias. Que tava deprimido. Abatido com algumas coisas. Aí ela continuou dizendo que eu era lindo e tal. Que amava a minha voz. Adora tudo que escrevo e papo vai e papo vem uma lágrima escorreu no rosto dela. Fui cavalheiro. Acredite. Posso parecer bruto. Ríspido em alguns contos, mas depois do meu último noivado que quase acaba em suicídio, tenho tratado as mulheres como anjos. Como seres superiores. Melhorei muito. A porrada seca de um abandono adestra o cachorro mais louco. Peguei um guardanapo e limpei suas lágrimas. Um amigo carioca que sempre entra no gringos bar e já vai me chamando para dar um tiro de pó no banheiro viu a parada e passou direto. “esse urso é feio pra caralho, mas é foda com as minas” deve ter pensado antes de abrir uma petecona e cafungar a amargura da vida. Ela me abraçou com força. Tão forte que parecia uma filha fazendo as pazes com o pai. Puxei vinte contos do bolso e paguei o que tava bebendo e a garrafa de água mineral que ela bebeu. Saímos abraçados descendo a Avenida Eduardo ribeiro em busca de um táxi e um mendigo albino gritou sentado na sarjeta: “o amor não existe! foda-se o amor!” Ela apertou a minha mão e fez um pedido: “já que você não quer ficar comigo, promete uma coisa? Escreve um poema ou conto bem bonito pra mim?” ela entrou no táxi. Deu um tchauzinho triste e respondi para meus demônios mais líricos: “já virou poesia”.
Diego Moraes é um escritor Manauara. Autor dos livros: “A fotografia do meu antigo amor dançando tango” (2012) e “A solidão é um deus bêbado dando ré num trator” (2013), publicados pela Bartlebee; “Um bar fecha dentro da gente”, pela editora portuguesa Douda Correria; e “Eu já fui aquele cara que comprava vinte fichas e falava ‘eu te amo’ no orelhão”, pela Corsário-satã e o recém-lançado “Meu coração é um bar vazio tocando Belchior.” (Penalux)