Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

CONTO DE LISLEY NOGUEIRA

$
0
0





Carta pra quem?

Só podia ser coisa do capeta. O sonho de chegar em casa, enfiar os pés nas pantufas e sossegar na minha poltrona, sabotado pelo burburinho no corredor. Que raiva. O piso de madeira dava a sensação de que todo tumulto era emergência. Silêncio era um intervalo entre as confusões do meu vizinho e as desavenças do casal do outro andar. A compensação era morar há vinte minutos do trabalho, ter um espaço onde cabiam os meus livros. O barulho aumentava e vi que não era a bagunça dos fins de noite. Soou o alarme de incêndio. E daí? Chamaria a minha atenção se fosse num dos prédios da Avenida 4 de Julho, mas nessa desgraça da década de setenta? Esse lugar deveria se chamar Mausoléu. Pus água na chaleira, e enquanto não fervia, comi uns três cookies ou quatro, não sei. Tinha exercício pra fazer. Uma carta de amor. Só me faltava essa. E eu lá acredito em amor? Só queria silêncio, escrever e dormir em paz. O apito na chaleira. Café na caneca, barriga cheia e subiu um cheiro de queimado. Tudo em ordem. O cheiro poderia ter vindo da rua. Sentei na escrivaninha e... Acabou eletricidade. Que raiva. Não posso fazer o exercício e não enxergo as coisas por aqui. Tenho velas na gaveta, vão servir. Carta de amor à luz de velas, só faltava essa. Mais um tempo e ouvi uns estalos, meus olhos ardiam, foi quando acordei para o problema. Capaz de ser incêndio. Até parece que me avisariam de um incêndio. Esses vizinhos insuportáveis... Tentei chegar à porta e aos tropeços, derrubei meu vaso indiano, machuquei o pé direito. Pânico. O fogo tomando o espaço, impossível abrir os olhos, puxava o ar que não me servia, vontade de desmaiar, mas o coração não deixava, claro que era a morte chegando. Pensava na fuga e na maldita carta de amor. Foi quando eu percebi a mediocridade da minha existência, o mundo pegando fogo e minha preocupação era morrer e não escrevê-la. Mancando, achei a saída de emergência, emperrada. Não lembro se foi a ideia fixa do exercício ou por me imaginar tostada no próprio corredor, um dos dois me trouxe o choro. Chutei a porta com a força que sobrou, por sorte era o segundo andar. Desci os degraus aos pulos e só sei que saí do inferno. Bombeiro, polícia, alguns vizinhos, eu devo ter pulado as grades no desespero, havia uma ambulância. Depois, meu apagão. Acordei no hospital sem me lembrar dos detalhes. Uma guerra de minutos, vida, morte. Machuquei o mesmo pé duas vezes. Passei o dia quieta, anestesiada. O casal briguento veio me visitar. Trouxeram flores. Grande coisa. Podiam ter me trazido duas notas de cem. Tive que forçar um sorriso. Disseram que o seguro daria conta de tudo e o síndico ia resolver. Falaram sobre gratidão, sorte e outros blá, blás, que eu fingia ouvir. Eles me levaram para casa. Eu usava um moletom, um jeans e a pantufa esquerda. Subi aquelas escadas como se tivesse sido com outra pessoa. As paredes amareladas, descascadas, o que sobrou do carpete, no canto do hall à direita. Cenário de guerra. Entrei no apartamento, e aquele soco visual, muita coisa pra limpar. Vidros pelo chão, fuligem. Pus água pra ferver. Café antes de tudo. Preferi fazer logo a faxina e recomeçar. Banho, eletricidade na área, colocar tudo no lugar, inclusive a minha cabeça, esvaziando os bolsos, tirei do moletom um escrito rascunhado, letra minha. Lá mesmo, na porta do banheiro, li: “O amor cabe em uma carta? Há palavras para ele? O amor não é para um só, é para todos. Quem não crê, vive de quê? Carta de amor para o Amor (Título).

Hoje quem vai morrer é outra, não eu.”

A chaleira apitou.


 *    *    *



Lisley Nogueiraé ilustradora, fotógrafa, mas encontrou na escrita sua forma mais ampla de expressão. Participou de coletâneas no formato e-book: 6 U N I V E R S O S-Antologia poética; e MONANTO, organização e seleção textual. Possui textos publicados na Revista Alagunas; Site.



Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles