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Imagem: Disfigurine #46, de Justin Novak |
Quando os maracujás florirem
Meu caro, não, meu querido, não, meu esposo, não, meu companheiro, não, melhor poupar designações, tudo que nomeio me compromete e não diz nada, talvez por isso as letras me interessem tanto, sim, pela sua incrível ineficácia. Melhor eu começar assim, escrevendo assim, do início, sem remetente, uma carta nunca deve ser lida por apenas um leitor, uma carta tem segredos que dizem respeito a quase todos, pequenas banalidades e deslizes que muitos cometem. Também não colocarei data, as coisas foram acontecendo assim, ao longo de tantos anos que colocar um número exato daria uma impressão errada dos acontecimentos e parecerá que em um dia preciso nos desentendemos e resolvemos desembaraçar e você sabe, não foi bem assim, as tragédias acontecem um pouco a cada dia. Primeiro um hematoma perto da virilha, um tombo pequeno, uma ralada no joelho, depois uma queda e um braço quebrado, depois uma escada e uma fratura exposta, depois as varizes que estouram de repente e inundam a sala de um sangue vermelho e grosso. Não, também não foi assim, acho que primeiro foram os cachos, as uvas em cima da fruteira, sim, aquelas brilhantes, feitas de plástico. Não sei bem, nunca fui muito ligada a métodos e números cardinais. Não, foi ainda antes disso, desde muito cedo me apaixonei pelas parreiras e nem sei ao certo porque elas me causavam tal encanto, eu poderia passar tardes inteiras olhando os caminhos que seus ramos percorriam e ao anoitecer já não me recordava das trilhas e era necessário pela manhã recomeçar meu trabalho de catalogação. O primeiro ramo a nascer se estendia em direção ao telhado se furtando do compromisso de seguir o estaleiro-quadrilátero que compomos quando trouxemos as minúsculas mudas. Essas mudas não irão pra frente, veja estão tão fraquinhas, se eu fosse você eu plantaria maracujás, você já viu como são bonitas as flores do maracujá¿ Ou quem sabe aquelas margaridas miudinhas, eles dão em qualquer lugar. Sim, eu compreendia e sim ele não era eu, de forma que se fosse, ele jamais plantaria maracujás e se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não suporto os maribondos que perseguem as florações e nem qualquer outro tipo de inseto voador. Não, ele não era eu, caso fosse saberia que minha infância inteira eu vi os maracujás penderem da cerca que separava minha casa da casa vizinha. Se ele fosse eu ele saberia que não suportava lembrar a brutalidade que minha mãe arrancava os frutos ainda verdes do pé para que a mulher da casa ao lado não tocasse suas mãos sujas no fruto. Se ele fosse eu ele saberia que a única moça que eu amei na vida morava na casa ao lado, sim ele saberia e sim ele não me chamaria de lésbica quando conto essa história, não diria que no tempo dele mulheres que amavam mulheres morriam solteiras, não ele não diria, ele não diria que no bairro, ele e seus amigos comiam mulheres que gostavam de mulheres. Sim, ele saberia que as mulheres se camuflam de homens muito melhores que os homens. Ah, se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não me empenharia em cuidar de flores miúdas que dão em qualquer matagal, que eu não me abaixaria, não tocaria minha bunda na terra e não tiraria os capins que cobrem as flores pequenas e se ele fosse eu ele saberia que eu só cuidaria em vida das parreiras, só delas e de mais ninguém... Mas sim, ele nem passava perto do que eu era e nas raras vezes em que pedi para que ele se colocasse no meu lugar, ele se levantava do sofá e dizia que não ligava a mínima, e de baboseira e pontos de vista e referência já bastavam as aulas de geografia e que elas tinham ficado para trás faz tempo, se eu quisesse mesmo que ele se colocasse no meu lugar que lhe arranjasse uma buceta, só assim saberia ser mulher e pensar com a futilidade de uma mulher. Falava e espirrava pequenos jatos de água com a boca. Então, eu tinha certeza, ele jamais seria capaz de ter uma buceta e nessas horas eu tinha fé, Deus não teria colocado um buraco no meio das pernas dos homens, não mesmo, até mesmo o cu duvido que seja coisa de Deus. Passei muitas noites acordada pensando em uma maneira de me vingar, se tivéssemos filhos poderia levá-los para longe e proibir suas visitas, mas ele nunca quis ter filhos, dizia que a próxima geração era de pervertidos e ele não se arriscaria, podíamos ter gatos e cachorros e uma tartaruga, se quisesse ser mais exótica. Não, eu não era exótica, exceto as parreiras. Às vezes, durante a noite, eu escutava sua barriga fazer barulhos terríveis e então, pensava, ele podia ter uma úlcera incurável, no entanto, logo depois você arrotava alto e dizia, puxei minha mãe, tenho estômago de avestruz, eu desanimava com minhas pequenas vinganças invisíveis, não seria tão fácil te perder. Maquinava em minha cabeça diversas formas de machucá-lo, fazer com que não voltasse mais, enquanto isso, eu via cachos verdes em miniatura despencando da parreira, logo as uvas poderiam ser colhidas, no começo do ano talvez. Uma noite escrevi uma novela de duzentas páginas inspiradas em você, foi inútil, você dizia que detestava literatura, era tudo uma balela e que aquelas páginas só serviriam mesmo para limpar a bunda. Esquece, literatura não serve para nada mesmo, é como disse, as letras me interessam pela sua ineficácia. Agora não haveria erro, minha vingança não tinha como falhar, você não teria como escapar, você estava preso no estaleiro-quadrilátero que compomos. Esqueci de perguntar ao meu pai as pragas que atingem as parreiras, depois resolvo isso. Sim, o mais importante agora era a minha vingança. Sim, o estaleiro parecia forte, sim, você era bom com as construções. Cinquenta e dois quilos, sim, era um bom peso. Como fazia todas as tardes, coloquei a cadeira embaixo e fiquei admirando os ramos e agora também admirava o espetáculo dos primeiros frutos. Amarrei a corda, subi na cadeira e depois o chute. Ainda sinto o cheiro das flores de maracujá e o gosto do beijo de Estela e da surra e da briga eterna entre meus pais e a vizinha-vadia-mãe-solteira que não sabia dar educação para filha, a filha que tinha gostos exóticos. Sim, você tinha razão, devíamos ter escolhido os maracujás ou as margaridas ordinárias. Não, não se preocupe, o capim não está tão alto, peça um pouco de mata-mato para meu irmão, vamos você deveria saber que os cachos demoram para crescer, sim, melhor eram as margaridas ordinárias.
O jardim branco
O homem é a semente da degradação
Olho para o céu e vejo Deus transformado em um pássaro negro de origami e ele devora a carne verde que se forma em volta da minha carcaça e ele vai espalhando no músculo da rocha a minha combinação incerta de átomos.
Volto ao jardim branco em frente ao salão de festas, um acorde ainda ressoa longe no meu ouvido esquerdo. Disfarço minha ânsia de gritar. Ele continuava lá sentado no banco, como se eu estivesse ali o tempo todo mirando seu perfil. Ele me falava sobre a sua misoginia, sobre o quanto repugnava as mulheres, no entanto, elas nem eram capazes de retribuir tal aversão, eram tolas demais para experimentar o ódio. Como ele podia respeitar alguém que não sabia nutrir ódio pela humanidade¿ Como ele podia respeitar alguém que se curvava ao menor tremor¿ Considerava que o buraco no meio de suas pernas era a prova mais evidente e atroz de sua fraqueza. Nunca conseguira encontrar uma mulher que sustentasse a palavra até o fim, sua língua é mais ágil que seu cérebro. Diferente dos homens, que podiam ser calhordas, mas jamais voltavam atrás em seus acordos. Olhe bem para mim, diga se eu não estou certo quanto as minhas colocações¿
Divaguei um pouco enquanto ele pronunciava suas blasfêmias, o que bem poderia ser o que ele chamava de um defeito tipicamente feminino. Ajeitei o cabelo que escapava por baixo do chapéu. Apalpei meu externo, à procura inútil dos meus seios, eles são ridiculamente pequenos e escorregam facilmente...
Não sei se a culpa era dos pelos grossos que cobriam todo o meu dorso ou do meu chapéu coco um tanto masculino. O fato é que ele não parecia reparar que eu era de uma espécie inferior a sua.
Estendi meus dedos em volta do pescoço como se procurasse um pomo de adão ou desapertasse uma gravata borboleta que não existia. Ele reparava em meus movimentos e pigarreava de alegria, afinal, éramos tão parecidos que ele podia se deitar na minha cama e não tocar no meu sexo, porque meu órgão era grande, pesado e imponente como o dele e como dos touros que não foram castrados. Eu não era como as outras que tinham as genitálias escondidas na abstração e nas gretas do corpo, meu clitóris despencava das minhas ancas como um sino enferrujado prestes a cair.
A mulher é cheia de pretensões e na sua cabeça germinam apenas futilidades, diz conhecer o abismo dos homens, enquanto sua alma não passa de um porão cheio de quinquilharias. Como poderia adivinhar a ranhura na face do macho? No entanto, qualquer pedra desse jardim pode dissertar mais sobre a evolução humana do que esse ser rastejante originário da vértebra fraturada de um cão sarnento. Eu não tocaria na vagina de uma mulher nem que me pagassem, todas elas são dentadas.
Consegue sentir a música? Inteira, eu digo, sem distinguir os instrumentos de sopro ou a agonia das cordas¿ Sem imaginar a orquestra, o maestro ou a intriga entre os artistas que fingem cantar em uníssono como se fossem um só corpo, uma só voz, um só anseio¿ Uma mulher não conseguiria, ela ficaria horas analisando sobre a importância das notas utilizadas, o compasso, o ritmo, a harmonia, porque para ela é mais importante a origem do que o produto final. Remói os miomas do seu útero e não é capaz de reconhecer a cria que rasga sua vulva.
Ele continuava discorrendo como um maníaco depressivo. Olhei para seu rosto animalesco, para a curvatura das suas costas, um pouco disfarçada pelo terno escuro, para os seus débeis e longos dedos. Recordei da primeira vez que o vi sem roupa através da fechadura, não conseguia entender como eu podia amar um homem como aquele, um primata, eu me perguntava se ele participara daquela tal evolução que transformou os macacos em homo erectus, a sua coluna vertebral era tão envergada que eu poderia também ver a sua semelhança com um cachorro, nunca com outro homem ou com um ser divino, feito de matéria porosa e perfeita.
Embora ele não percebesse, ele também não passava de um símio, que por um erro conceitual do Ser ganhou o nome de homem.
Toquei de novo o avesso da minha cartografia. A mulher era um corpo oco até que Deus a sodomizou, ejaculou o sêmem da desgraça na sua cloaca. Então, ela deu o primeiro suspiro, descobriu que o mundo era semelhante a um pântano, deixou de ser objeto vazio para se tornar um simulacro e simultaneamente um criadouro de homem.
Quando vi o quanto era ridícula minha forma, pensei em partir. Contudo, ao olhar ao meu redor, eu percebi que estava só, não havia ninguém além de mim no jardim branco, não havia nenhuma festa no saguão, nem danças e o som de jazz que escutava não passava do coaxar dos loucos do outro lado do muro das lamentações e tampouco o jardim branco existia. Um escaravelho rolava um esterco de um lado para o outro imitando os movimentos de translação e rotação. Eu estava suspenso por uma espécie invisível de corda, o balé das marionetas, eu poderia despencar a qualquer momento e experimentei o medo pela primeira vez. Dei uma cutucada embaixo das minhas costelas, não senti nada, minha carne se tornou gelatinosa e transparente. Definitivamente eu estava no não-lugar e meu nome era Deus.
Encarnación
Encarnación gostava de ficar sentada sob o sol olhando os emaranhados da videira. Ela se esparramava e ocupava a tarde podre. Encarnación, eu era fascinada pelo seu nome. Ela ria gostoso, desses risos de gente velha “minha filha esse nome traz má sorte”. Não ligava, Anna me parecia solitário demais, lembrava as migalhas do tempo, os bagos fermentando as vistas. Nos dias de festa, as moças arreganhavam as saias e esmagavam os cachos com os pés. Foi assim que experimentei pela primeira vez o gosto da carne, disfarçado no gosto vermelho da uva.
Anna era descendente de uma tribo distante. Um povo selvagem que na época de pouca fartura devorava ritualisticamente seus cadáveres.
A clarividência é meu inferno, muita gente reza todos os dias para ter o meu poder. No entanto, jamais desejaria, nem mesmo ao meu pior inimigo, conseguir enxergar todas as frestas que vejo, cada minúsculo buraco, é como uma lagarta de fogo que percorre infinitamente o mesmo tronco e mesmo sabendo da sua sina é impossível trilhar outro caminho. Eu sei as tramas de todas as minhas histórias e isso não me impede de vivenciá-las.
Quando eu conheci Anna já sabia seu destino, já sabia como seu corpo se entranharia no meu – videira vasta sem espaço, vísceras mortas devastando o asfalto. Foi impossível não me apaixonar por Anna, ela exalava um cheiro de desgraça que me corrompia e me aproximava. Seria capaz de lamber seus pés até que ela adormecesse.
A primeira vez que entrei na sua casa, me assustei. Na parede do seu quarto estava pendurado um cavalo que era só sombra por dentro, os olhos vazados, os músculos exaustos disfarçando o oco, como se tivesse sido devorado por um monstro.
Não foi fácil convencê-la do meu amor, ela tinha um olhar atravessado, não via o que estava a um palmo do seu nariz, mas o que estava diametralmente oposto a ele. Olhando para o chão, só conseguia enxergar as teias de aranha do teto. Eu compreendia perfeitamente, eu também não era a pessoa mais normal do mundo. Um dia ela me confessou que era verdade o que eu tinha visto, ela era descendente de um povo chamado Antípodas.
Antes disso, antes da sua confissão, passei várias noites em claro tentando entender o que aquilo poderia significar. Na cabeça me apareceu Antípodas, comecei me impressionando com a origem da palavra, em seguida fui imaginando os mapas, a cartografia traçando opostos, de um jeito ou de outro a matemática me intrigava. Mas não foi a matemática que me levou a descobrir que na Antiguidade seus parentes tinham os pés opostos. Comecei a compreender porque a primeira vez em que vi Anna ela corria entre as videiras plantando bananeira. Na segunda vez que a encontrei ela tinha um espelho colado no peito, andava rindo, catando as uvas estragadas e colocando na boca, de longe escutava os estalos e o cheiro fermentado da sua língua geográfica.
Embora nunca tenha me enxergado por completo, Anna começou a me enamorar. Ela gargalhava quando escutava minha voz, saía da posição de bananeira e me dava uma lambida no rosto. Não posso dizer que isso me impressionava, pois eu já sabia do que Anna era capaz.
Anna cutucava o chão, comia desesperada as raízes, os tubérculos, as pequenas minhocas. Não satisfeita passou a comer torrões de terra. Ah, meu Deus! Quem me dera fosse apenas isso. Depois passou a comer pequenos cadáveres. Chorava me implorando perdão, dizia que não era culpa sua, era coisa herdada. Primeiro eram corpos mortos de coelhos, gatos, cachorros, cavalos. Até o dia em que experimentou a carne de uma moça. Foi além, devorou a carne macia de um bebê.
Fui visitá-la, como fazia todo entardecer desde que nos amamos pela primeira vez. Havia sangue por todo lado. Ela me olhou triste-feliz-arrependida, confessou que não foi capaz de se controlar. Cutucou o umbigo, primeiro no meio, depois em volta, retirou aquela espécie de novelo-ninho-pintura abstrata que se formava dentro dela. Comeu o próprio feto – meu primeiro filho, o primogênito. Me calei. Ela me olhava faminta. Nunca tive medo, eu sabia que ela se contentava em sugar meu sêmen, ele era um pouco da minha carne. No entanto, não queria deixá-la furiosa, desde criança tive tendência a acumular sobras embaixo da unha, isso me irritava. Agora essas sobras me salvavam a pele do sacrifício. Anna não era ruim, só tinha herdado o vício nefasto de seus antepassados.
Ofereço minhas mãos solícito. Ela agarra e rói minhas unhas com desespero. Ela traz o pequeno espelho de moldura laranja no peito. Lá fora, eu posso enxergar os emaranhados da videira e a tarde quente apodrecendo os bagos.
Gênese
Ela estava há milênios ajoelhada naquele cubículo e expunha com certa vaidade uma fratura no fêmur esquerdo. Brincava com uma Matrioshka. Tirava e recolocava as várias bonecas russas, enfiava o dedo no miolo, encontrava a menor de todas, rasgava com uma faca, duvidando da sua entranha oca, do seu corpo sem órgãos, como se através dessa manobra pudesse resolver sua demência ou seus problemas de ancestralidade.
Olhando-a assim, acreditei que ela jamais morreria, estava enganado, ela era uma barata branca e logo seria esmagada.
Não foi fácil ver seu corpo estendido na pedra. Aqueles seres estranhos, vermelhos e mascarados (sempre considerei a máscara uma repetição desnecessária), falando línguas estrangeiras, dançando e urrando, imitando o som gutural dos animais. Ofereceram-me um cálice de sangue, eu deveria celebrar a morte, sacralizar o útero que foi meu abrigo, minha origem. A caverna era escura, úmida. Havia na parede da rocha, atrás do seu corpo, o desenho de uma vulva aberta e gigante, em volta caçadores com seus membros em ereção, em outra gravura um antílope estava montado em uma mulher nua e grávida, aos seus pés demiurgos ejaculavam.
Colocaram em minhas mãos um instrumento pontiagudo, fizeram gestos que indicavam que eu deveria retirar as vísceras do cadáver e fazer uma trepanação. Hesitei, mas concordei, a matéria era uma abstração e nunca foi sólida, era uma rachadura, uma trinca no tempo-espaço.
Sei que existe um animal rastejante que circula em sentido anti-horário pelo meu útero (sou um homem castigado com um útero), se espreguiça nas minhas trompas, se enrosca nas paredes do meu intestino, como um cão de rua que não morde, mas fareja, mas fede. Trêmulo começo a estripar aquele corpo-origem. Partenogênese. Ovo cósmico.
O ritual de sepultamento continua e eu sigo fazendo a trepanação. Lamento porque nunca me senti parte desse mundo, porque quando cheguei o mundo já estava instituído. É como se eu fosse uma orelha implantada no organismo de um sapo. É como se eu tivesse despencado em um país estrangeiro e por todos esses anos continuei um exilado no meu corpo-máquina. Preciso ser civilizado, sou homem e preciso entender o sorriso fingido dos hipócritas, a boca banguela, desnuda dos desalmados. A humanidade se alimenta parindo ovos chocos. Preciso ser homem, trabalhar, acasalar, conversar, entender de política, entender a rosa dos ventos, fingir felicidade, matar os porcos que aparecem nas noites sujas, quando tenho as vértebras trincadas e pinos na mandíbula.
Nasci no corpo-simulacro de um homem evoluído. No entanto, minha alma tem uma corcunda feia e incurável, minha alma é de um egiptopiteco, um primata franzino de seis quilos.
Então, diga, como não ser arrebatado se não tenho olhos nas costas? Ando atento pela casa e em todas as casas multiplicam ferrolhos enferrujados. Como posso sorrir se sou um amontoado de átomos, os quais poderiam tanto estar em mim como numa cadeira de vime. Ela me falou que eu era fraco e por isso estava em eterna diáspora. Eu catava piolhos de um macaco de pelúcia. Só não era mais ridículo porque eu nascera inteiro, sem amputações. Era nesse ponto que ela se enganava. Eu era a própria amputação, a própria rachadura na coluna de Deus. O meu quarto-mundo era uma incubadora e eu estava fadado a viver cem anos e continuar prematuro.
Um enxu de moscas andam tontas e circunspectas em torno do meu mamilo. Não sinto cócegas, não as expulso, acompanho sua coreografia macabra nas redondezas do seu peito. A angústia não é muito diversa de um amontoado de larvas de inseto. Barroca.
Coagulo a noite. Navalho a face profícua de Deus. Continuo a trepanação. Depois de um tempo eu era só o exoesqueleto de uma cigarra, vazio, solitário, oco.
Não havia dúvida do que eu deveria fazer. Abri a vulva da minha mãe e voltei ao seu útero. Invaginação do fora. As esporas, os cascos, os trotes, a noite, o beco deixaram de me incomodar.
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Foto: Ninil Gonçalves |
Márcia Barbierié paulista, formada em Letras e mestre em Filosofia. Tem textos publicados em várias antologias e nas principais revistas literárias brasileiras. É uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro e do canal Pílulas contemporâneas. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno e As mãos mirradas de Deus, os romances Mosaico de rancores (no Brasil pela Terracota e na Alemanha pela Clandestino Publikationen), e A Puta. O romance O enterro do lobo branco será lançado esse ano pela editora Patuá.