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Imagem: "Open Minded III", de Maria Rubinke |
Rua da Bahia, 1149
As sombras insistem
em dançar sobre a mesa antiga de carvalho
Dentro de meu castigo feliz
encastelada
Jogarei minhas tranças
se lhe apetecer
O vento de inverno
lambe minha nuca
eriça meus pelos
O vento me diz não morra jovem
O vento me diz seja insolente
O vento me diz queime navios
Só o vento conhece minha tristeza.
Jogarei minhas tranças
ao anoitecer
Imensa janela
Vitrais Belgas dos anos 20
emolduram
especialmente para meus olhos
um trecho conhecido da cidade
(Rei Alberto, pobrezinho, não andou de elevador)
Para quem vê de fora
dos andares mais altos
dos prédios da frente
a emoldurada sou eu
moça de óculos
no fundo da biblioteca
cumprindo seu castigo feliz
e decifrando as sombras
que o vento desenha
e inquieta
sobre a desbotada mesa de trabalho.
Jamais haverá cura
O pai morreu louco
Gritando meu nome
O céu desbotava em seus olhos
A escuridão para sempre enterrada em meu peito
Jamais haverá cura para a minha tristeza
Toda noite
A chuva fabricava a lama
Que incharia seus ossos
O pai morreu gritando meu nome.
No sonho da Pequena cega
Há gatos com gestos de príncipes
No sonho da Pequena surda
Há vozes, vertigem,verão e voragem
No sonho da Pequena cega
O gato
Flecha certeira
Atravessa a curva do trilho
Para estraçalhar
Do rasgo
Na pele da presa
Entornam
Vermelhas
As vísceras
O gato chafurda.
No sonho da Pequena surda
A velha vitrola enguiçada
O pai jogando o gato na parede
Os ossos se partindo
Num estalo.
Todas as noites
A chuva fabricava a lama
A escuridão sempre esteve
Enterrada aqui
Jamais haverá cura para minha tristeza.
Pai, por que você está chorando?
Pai, por que você está gritando?
Pai, por que você matou o gato?
Pai, por que deus está mancando?
Jamais haverá cura para minha tristeza.
Exortação a uma Loba Filhote
Não chore
pequena Loba
pelos teus pássaros apodrecidos
nem enlouqueça quando os vermes
violarem o azul de teu verão mais bonito
É da natureza dos muros
existirem para atrair o musgo
assim como o sentido da chuva
é engendrar a lama
para decompor a vida
apenas golpeie
com punhos
ou rosas
golpeie
Não se esquive de causar assombro
como um trecho de sinfonia
E acima de tudo
goze
pequena Loba
como se
inteiro
um sol ardesse
em teu
útero.
O vento uiva alto por aqui
Para sentir meu coração
por um segundo
me banhei na agudez dos violinos
despetalei lilases
como quem
desde sempre
vestida de sépia
sonha
Por um instante
ser cor.
Para sentir meu coração
por um segundo
alcancei o último andar da torre velha
tropeçando em escadas carcomidas
me agarrando à ferrugem
de toda uma extensão de corrimãos.
(Adiar o vazio
Dizer não ao salto.
Mostrar o dedo médio para a força destrutiva da gravidade).
Para sentir meu coração
por um segundo
deixei ir embora a beleza que perdi
O vento uiva alto por aqui
entre esses edifícios
conversa com meu grito
toda noite
quando sinto falta
até da sua cicatriz
em que deslizo as pontas dos meus dedos
para sentir seu coração
por um segundo.
Também estivemos em Pompéia
Também estivemos em Pompéia
O sol açoitava as pedras
sonhando repetir a lava
Também estivemos em Pompéia
Respirando a poeira do tempo
O Vesúvio era apenas
inofensivo amontoado de rochas distantes
ou uma boa ideia para um nome de gato
Também estivemos em Pompéia
Se eu estiver em fuga
se uma língua de vulcão extrair de meus ossos
minhas carnes
eu vos rogo
jamais preencham minha carcaça
com gesso
ou com outras substâncias moldáveis
Jamais
vos suplico
aprisionem meu medo
num rosto apavorado de estátua.
Simone Teodoro é poeta e mestra em Literatura Brasileira, pela UFMG. É autora dos livros Distraídas astronautas (Patuá, 2014) e Movimento em Falso (Patuá, 2016). Lê poesia compulsivamente.