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Marias são nossos nomes [...] - a escrita falada de Isabela Penov

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A Impossível Canção de Ninar


Era uma vez uma menina que não se chamava.
Que ninguém chamava.
(Ela não tinha nome.)
Uma menina que não morava em nenhum lugar.
Ela não estava nem permanecia.
Ela não tinha vizinhos não tinha pai nem mãe.
Uma menina que não nasceu, não foi cuspida, esculpida ou
escarrada, nem no lixo nem no mármore.

Era uma vez uma menina que não respirava, que nem o ar lhe passava.
Que não dizia nada não ouvia nada
(Ela não tinha voz nem ouvidos.)
Uma menina que não era menina.
Uma menina que não dormia nem acordava.
Ela não tinha olhos ela não via nada ela nunca viu um chapéu
nem um passarinho nem sapatos nem criança.
Uma menina que não tinha tripas
não tinha estômago
nem rim nem coração
ela não tinha nada.
Uma menina que era um monte de nada e de nunca,
nada e nunca
dentro dela num monturo,
no meio do dentro que não tinha fora.

Era uma vez uma menina que não chorava.
Não brotava água dela.
Uma menina que não ria. Não tinha força para um espasmo
de gargalhada, não lhe saía força.
Uma menina que nunca incomodava.
Ela não tinha mãos nem pés nem cabeça.
Ninguém via.

Mas pairava, uma presença.

Menina-latrina
Menina-asfalto
Menina-caminho
Menina-da-guia
Menina?

Ela nunca viu a praia nem a rua.
Nem a lua e nem o sol.
(Será que a praia a rua o sol a lua viam a menina será?)
Ela não tinha brinquedo nem amigo.
Ela não ouviu uma história nem música ela nem sabia
O que era música ela
Não ouvia história ela não tinha
História nem estava numa.
(Só nesta, agora.)

Era uma vez uma menina que não olhava pela janela ela
não tinha casa nem quarto e não tinha portas.
Ela não ia nem vinha.
Iam e vinham e passavam por ela e ela nem.
E quem passava nem, também.

Ela não comia não tinha dentes nem saliva.
Uma menina toda vazia que não parava em pé.
Ela nem tinha pés.
Uma menina que era uma fome.

Ela nunca gritou nunca gritava. Nada vibrava nela.
Ela não via a cidade se movendo nem roupa no varal nem
trem nem bicho nenhum nem
nuvem nem corda nem terra nem margaridas nem.
Uma menina que era uma coisa. - Se você visse, uma coisa!
Mas era coisa sem nome sem forma sem cheiro sem nada.

Era uma vez uma menina que não tinha nada. Uma menina que não tinha nome.

E não foi aí que nada.
Não foi nada.
Nada veio.

Era uma vez uma menina-paisagem. Mas os olhos não viam,
era paisagem de viagem, que corre e desmancha, desmancha
e vai embora, e vai e nunca se pode lembrar.
Uma menina que se confundia com tudo o que não fosse menina.

Foi uma vez. Uma menina que continua aí tão sem, nas outras.
Ela não termina.
Era uma vez uma menina que não tinha começo.
Era uma vez a menina que não tinha mais fim.




Cuidado: Inflamável


Ela merece!
Ela merece!
Ela merece!

Obrigada, obrigada e obrigada! Antes de mais nada, agradeço a deus e à costela roubada que ele me cedeu para que hoje eu pudesse estar aqui. Agradeço à família, à escola, à mídia, ao Estado e, claro, à polícia, enfim, a todos aqueles que me ensinaram a ficar calada e me manter assim. Obrigada, obrigada!

Afinal, eu mereço.

Aos quinze anos mereci ser revirada pelo avesso, violada e estuprada por um sujeito possesso, e o alto preço que paguei foi o meu viço e o silêncio, e esse grito que emudeço quando olho no espelho e quase não me reconheço. Por tudo isso eu agradeço e, sem modéstia, confesso que mereço.
Em nome de Maria, uma moça que conheço, agradeço ao sujeito que enfiou as duas mãos entre suas pernas dentro de um cinema cheio. Ela tinha quatro - quatro - anos. Graças a esse ele, nunca mais saiu de casa com um vestido tão curto. Graças ao susto ela entendeu o seu recado: "meninas como eu precisam tomar mais cuidado."
Agradeço também ao cavalheiro que durante o costumeiro trajeto de Luci, minha amiga, para casa, abriu a calça e sem disfarce masturbou-se ao lado dela. Ela não gritou e ele concluiu que a devassa estava mesmo era gostando da homenagem. Obrigada ao galante passageiro que alegrou sua viagem! Ela merece!

Afinal, ao que parece, nem todas merecem ser abusadas pelos canalhas. Assim diz o deputado capitão engravatado Bolsonaro que a cada palavra sua estupra a luta e chuta a dignidade de todas as mulheres. Ostentando a farda, o calhorda lambe as botas de burgueses canalhas enquanto medalhas de sangue reluzem sob o seu terno, e arde sob a sola dos seus sapatos o inferno dos famintos e torturados.
Cada palavra sua é um estupro.
Digníssimo deputado, será que preencho os requisitos do seu infame manual para ter a honra de ser estuprada pelo seu falo liberal? Sou bonita o suficiente para ser amarrada pelas mãos ensanguentadas do capital? Rebelde o bastante para ser castigada como tantas mulheres violadas em celas escuras nos porões da ditadura que o senhor tanto admira e suspira de saudade?

Mulheres não geram apenas filhos: geram Amanhãs. E os martírios e silêncios fecundarão em nosso ventre um rebento de luta - por um tempo em que haja vida, não labuta. Você e sua corja vendida e fajuta vomitarão nesse dia o desespero pelo fim da dinastia dos porcos. E aos poucos, caro deputado, faremos das chamas onde fomos queimadas uma fogueira encarnada que tomará o mundo inteiro: o fogo rubro de um novo Outubro que fará de Bolsonaros e parasitas apenas cinzas perdidas no esquecimento.

Morremos queimadas nas fogueiras da Inquisição, mas renasceremos, livres, no fogo da Revolução.




Marias de Mim


Muito prazer, eu sou Maria. Maria filha de Maria, mãe de deus, Santa Maria, a Virgem. Depois de seu primogênito, ela teve outros rebentos: Tiago, José, Judas, Simão. E teve também muitas filhas. Eu sou uma dessas filhas, anônima, nascida de uma ex-Virgem Maria por vias profanas: a saia levantada sem permissão, o coito rápido e o jato do gozo aliviado de um José indiferente. Passado o tempo, nasci - do pecado, como as demais. Não fui a escolhida de deus para mudar o mundo, mas, se ainda assim eu consegui mudá-lo, você não sabe e nem saberá: meu nome não merece citação entre os versos sagrados.
Muito prazer, sou Maria da Graça - sou ela, menina, que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar... Musa muda de canções e sonetos, modelo em pinturas e folhetos, cartazes e comerciais. Maria da Graça faz graça de graça, e a sua desgraça a revista não conta: Maria da Graça: junto! Maria da Graça: quieta! Maria da Graça: senta! Rebola. Senta, senta, senta, mexe, desce, sobe, rala, remexe, sacode a bundinha, sacode a bundinha, faz graça, Maria da Graça, me abraça, merece um carinho!
Muito prazer, sou Maria das Dores. A culpa é de Eva que quis conhecer, que quis entender, esse foi seu pecado marcado e rasgado na carne e no sangue: parirás com dor. É esse o castigo, essa invenção fajuta? Eu gero no ventre uma vida e sinto mexer o amanhã dentro da minha barriga - criar alguém vindo de costela é para os fracos! E na hora do parto eu grito, me mordo, contorço os pecados, eu sangro e percebo: a dor não me machuca mais! E canto, e danço e no auge do esforço pra parir a criança só penso: chupa essa, deus: Eva e eu estamos rindo, estamos rindo da dor! Em nossos braços um rebento morno nos mostra que dentro de nós cabem todas as auroras. E vocês realmente pensaram que temeríamos a dor? Vencemos, Eva, obrigada, Eva, obrigada!
Muito prazer, sou Maria. Maria Aparecida, não: Maria des-aparecida. Violada, rasgada, torturada e expulsa dos livros de história. Gritei contra as ditaduras, clamei por um novo mundo, implorei misericórdia dos torturadores mais cruéis. Consta nos autos: desaparecida. Mas vocês não esperavam, caros algozes: eu estou aqui. Eu não morro. Ainda luto nas lutas inglórias, nas brutas vitórias dos punhos erguidos ao longo da história. Eu sou a história. J'accuse! A verdade está a caminho, e nada a deterá.
Muito prazer, sou Maria do Socorro. Maria que pede socorro, na cozinha, no chão, na casa do cachorro, na chuva, em silêncio, gritando nos morros. Sou Maria, cicatriz e olho roxo: caí da escada. E você finge que não vê, aumenta o volume da tevê quando eu peço socorro sem poder, quando eu grito sem falar, mas eu grito, grito.
Muito Prazer, sou Maria dos Prazeres. A Maria que goza, a Maria que dá, a Maria que come e que sabe como se faz. Maria sem-vergonha, Maria vai com as outras, e com os outros, e com quem quiser, ao mesmo tempo, quem sabe. Sou dada, rodada, maldita e fadada ao amor. Sou a Maria que se toca, que te toca, que morde a boca, Maria louca, Maria louca!
Muito prazer, sou Maria Baderna, eterna, estrangeira, dançando na rua, aprendendo batuque, fazendo umbigada, criando bagunça pela liberdade, causando alvoroço, desejo, desordem. Sou um vírus degradando as mentiras das falsas madames.
Muito prazer, sou Maria Padilha. Você tem medo de mim? Pombagira girando, fazendo feitiço de saia vermelha, se olhando no espelho, bebendo champagne, comadre, cigana contando faceira seus sete punhais: vai se meter com Exu-fêmea?
Muito prazer, sou Maria, Maria dos Santos, Maria Pereira, Maria do Rosário, da Consolação, de Perus, de Guaianazes, Maria da Penha. Sou Maria, ave Maria que voa, faz ninho, revoada, migra e retorna, ave, ave Maria eu sou! Maria-Maria, Maria Alegria, Maria de luta, Maria Coragem, Maria Maré, Maria Festeira, Maria branca, preta, amarela, sou Maria, prima, filha, mãe, mas não, sou também Maria apenas, Maria tudo isso, Maria de Maria por Marias com Marias.


Maria(s) somos. Muito prazer.




Canteiro


Nessa maldita marmita sem mistura ele remexe o que atura todo dia / É meio dia, arroz, feijão e agonia requentada já salgada com suor de tanta lida / Restos de ontem, carne fria de segunda e na segunda a sua carne sente o açoite e a ferida / A vida amarga sem tempero e o dia inteiro, o dia inteiro no canteiro semeando a força bruta / “A vida é luta, a vida é luta” já dizia a sua avó / e aquele nó bem na garganta não desfaz mas disfarça a cada passo a vontade de gritar /
Farinha seca, terra seca, gente seca, sua terra, sua gente, e a saudade lentamente triturada entre seus dentes / Palita os dentes com os ponteiros do relógio, cospe o ódio, engole o ócio e canta um verso num minuto que sobrar.

E num lugar onde ninguém sabe o seu nome ao fim do dia à revelia uma pergunta lhe consome:

quem escolhe o que come? quem escolhe o que come? quem escolhe o que come?

Em meio a ordens tem que mastigar a vida, digerir toda a comida, as feridas mais doídas, sua classe e sua cor / Uns comprimidos, a tevê e a bebida não dão conta de prender e segurar dentro do peito esse viver doído e estreito de trabalho e desamor / E então / ele vomita. / Ele vomita cada dia então perdido, os pedidos que não fez, os sóis e céus que não viu, as paisagens que perdeu, os minutos que engoliu / Em meio à bile escorreram da sua boca dois mil sóis meio apagados paga dos dias passados que ele nunca viu passar / E foi cuspindo um triste grito sem medida, umas lágrimas contidas, todas as contas vencidas e as que nunca vai pagar / suas olheiras, a xepa do fim da feira, a canseira, a bebedeira, os trocados amassados na carteira, a chuteira pendurada, a bem amada que se foi sem ter porquê / Enxuga os lábios com uns versos amassados que ele fez nos intervalos com a esperança de alguém ler / (Quando menino ele sonhava em ser poeta, mas a vida é incerta, e a mão semianalfabeta sucumbiu ao desatino, vendeu o sonho menino por moedas no batente / Ingenuamente achou que vender os sonhos lhe daria outra vida de comida mais decente / Sem esperança, esqueceu que foi criança e entrou na contradança da máquina de moer gente.)

Toca a sineta então na terça como um tiro de escopeta no seu peito de poeta que não foi e nem será / Abre a marmita mirrada de todo dia, arroz feijão e agonia, outro dia a lhe gastar / E num lugar onde ninguém sabe o seu nome é que ele come mas a fome lhe consome ao fim do dia / Dentro do estômago e do peito ele tem fome e não é fome de pão, é fome de poesia.

Entre o arroz e um pirão meio mal feito, a barriga, a mente e o peito roncam a dor que carcome / E num lugar onde ninguém sabe o seu nome ao fim do dia em rebeldia uma pergunta lhe consome:

     quem escolhe o que come?
     quem escolhe o que come?

quem
escolhe

o que come?




Isabela Penov é poeta, atriz e fotógrafa. Dedica-se à poesia falada, escrita e vivida. Seu trabalho em poesia falada pode ser visto na crescente cena paulista de slam (campeonatos de poesia autoral falada,) no seu canal no Youtube e também nos vídeos "Cuidado: Inflamável" e "Mal Menor", ambos lançados no ano de 2015 e também presentes na coluna Videoteca, de Lisa Alves, nesta Mallarmargens. Na poesia escrita, colabora eventualmente em sites e revistas literárias, pode ser encontrada ao acaso em alguns lambes pelos muros da cidade e mantém o blog Semeaduras (isabelapenov.blogspot.com)

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