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Anotações de Sândrio Cândido

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Foto: ferida aberta/ Thais Alves
 
 
 
 
Foram as comadres no meio da estrada
quem me falaram desse estranho causo.

 _ O sinhor é crente seu moço?
perguntou-me uma, com voz de barro.

 _Sou não senhora,
embora  eu entre no rio,
quando a chuva abençoa as águas.

Mais moço, pra essas bandas de cá 
toda água nasce benzida.
Né não cumadre?

 _  É sim cumadre!
Nossas águas seu moço/ é bendição
pois com tanta  seca pra travessar
qualquer olho d’água
abre um riso na boca do cão.  

 _ Aquele monte de cinza era uma casa?
Perguntei assombrado.

_ Homem di deus,
essa casa não carece de lembrança
falar disso nun presta
cruz credo
pai dos pretos velhos
dez ave Maria; 
não bula com isso seu moço
é mior não dá pano pro encardido.

Depois de tanta bendição
a mulher colheu do chão os balaios
meus olhos carentes de fome
luziram quando seus lábios  
me chamaram a comer em sua casa.

Era tanta fome a me possuir
que o convite não pude recusar.

A casa da mulher fazia visível
a devoção que lhe escorria por dentro
havia quadros de santos
um rosário dependurado na janela
sal e incenso na mesa
velas brancas diante de nossa senhora  
e brasas em um copo com água.

Tamanha era a minha curiosidade; 
perguntei de novo sobre a casa.

A dona da casa olhou o chão
como se na raiz de deus a chamasse.
Rodopiou  água na parede
e quando sentou em mim entrou
os seus olhos ensimesmados.

_Já que o moço insiste em bulir
com essas coisas do distante,
eu vou pra ele contar.
Cumadre perdoe o atrevimento
licença peço pra santa Luzia
nossa senhora cuidai meus lábios
vou contar pra ele o causo.

_Na casa
onde cresceram
os cabelos da mãe,
havia
uma fotografia
chorando
desesperada
ninguém sabe a razão
pela qual chorava .

Foi  João dos espelhos
quem uma vez
acometido pelo ousadia da pergunta
quis aprender a raiz daquele orvalho.

 _Valha-me nosso senhor! Se benzeu a outra cumadre.
 
_Pois foi isso mesmo
a senhora escutou?

Bote fé na ousadia seu moço descrente
o bicho entrou na casa abandonada
olhou a fotografia/ perguntou sem medo
o por que  lhe brotava o rio dos zoios?

Então  a foto gritou pela aranha
e a aranha veio secar suas lágrimas.

Depois levantou a vista
na altura onde os zoios de João esperava
com uma tremedeira disse em poucas palavras.

 _ Vem cá perto,
olha bem dentro
pois se quiser saber
aprende a ver!

João sem medo cercou seus olhos
feito tábuas  postas para o curral.
_ Eu choro por isso; você me entende?

_Por terra caíram os zoios de João
os pequis desataram a gritar na chapada 
João tremendo abandonou a casa. 

_Bem disse a vó no tempo dos sábios
maribondo se deve deixar quieto
pois ocê é o único a quem eles arrasam!
disse a outra cumadre.

 _ Pois é cumadre!
_Depois de afogar nos zoios da lagrimada
correu João  pros braços de Tereza
feito menino quando ver assombração.

_No dengue dos dois se fez a alvorada!

_ Eu lembro como foi depois
desataram  sete anos de seca brava
( Começou a dizer a outra comadre)
os bois mugiam feito gente morrendo
nenhum milho prestava
os grilos sumiram todos
nenhuma barboleta
nenhuma largata
Até o Jequitinhonha esqueceu a maneira
de pentear as margens com suas águas 
 Zé da venda foi-se embora
da cana restou apenas o bagaço

E a fotografia coitada? Perguntei pra comadre

_Ah seu moço
voltou seus berros disfarçados de lágrima! 
Os anos comeram suas beiradas
a casa onde existia foi por água abaixo
formou uns poços e alimentou  o rio
e ninguém sabe de onde nasceram as cinzas.

Causo bom foi com o João
o homem esqueceu a música da fala
sentou debaixo do imbuzeiro
jogou pra longe o imburnal
ficou com os olhos arregalados
dizia ver deus nas águas.

Veio santo de tudo quanto é lado
Padim Cícero mesmo ficou devoto
daquele homem de sorte 
o único a entender os olhos da foto,
São João dos espelhos lagrimado!

Pois cumadre, ocê nem imagina
nem o moço sabe?

_ Fale mulher, ocê me deixa assustada!

_Por aquelas bandas ainda se escuta
um pranto desaprumando homens de coragens
e gemidos debaixo do imbuzeiro
na beira da estrada.

_Minha vó dizia:
(naquele lugar minha neta
quando a noite cai ninguém deve passar. )

_Quando é noite de lua cheia
São João desce do céu  e deita com Tereza.   
Quando alguém se aproxima pra mó  de ver
tem sua fala pescada nas gargalhadas.

Meu deus dos lírios, isso é mesmo verdade? 
disse a cumadre se benzendo três vezes,
espantando do seu corpo o nada.

_ Verdade nun  sei e não ouso conferir
pois cá pra nois também tenho medo
e o moço não sabe da missa a metade.  

Eu sem graça também me benzi
rezei três credos pra virgem das águas.

_E a fotografia?

_Pois seu moço
a dita cuja se fez poeira
as aranhas violentaram sua imagem.

_Ela trazia o vazio de João
mas esse teve tempo de ser salvo
se fez santo dobrando a alma
exorcizou do corpo a nódoa do pecado.

_Tereza lhe devolveu pelas margens
o amor que em vida lhe roubou as beiradas.

_  E essa Tereza onde está?
Perguntei imerso em curiosidade.

_ Tá onde ocê busca moço
e num sabe encontrar.

Olhei as comadres cheirando o tempo
pensei no longe que eu estava.
Catei  pela janela um fio de luz
em silencio rezei à estrada.

_São João dos espelhos lagrimados
teu vazio foi maior que a tua coragem
ou foi o amor quem te salvou
de morrer costurando beiradas?

 Eu não creio em nada
mas pela fé das comadres
te peço hoje
Santo homem das beiradas
pelo teu deus dos rios
senhor das águas
olhai por mim com compaixão.

Se vier encontrar Tereza
traz-me um pouco das suas moradas .

Curai em mim a dor da alma
costura em mim um pouco de fé
essa borboleta dentro do nada
e não me permita amaldiçoar a carne!



Sândrio Cândido ( Minas Novas- MG) AfroBrasileiro, Poeta, autor de Epifania ( Editora Patuá 2014), formado em Filosofia, é religioso, missionário católico entre os povos Afro Colombianos. Atualmente  estuda teologia católica. As anotações acima talvez um dia sejam parte de um livro batizado por MORAR.

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