ENXURRADA
E de repente
essa súbita vontade
de chorar a vida inteira
em uma única lágrima.
O DESPERTAR
Quando você chegou
não pensou na partida.
O adeus foi esquecido no tempo
Dentro de mim, uivando em febre,
dormiam mil mulheres.
Despertaram. Despertei
como Joana, a louca de Espanha
andando com seu coração
por terras castelhanas
como Erzsébet, a condessa sangrenta,
bebendo a juventude, recusando a cova
no sangue de gente nova
como Maria I, piedosa e louca
espalhando pelo solo sua desdita,
pregão e pranto: “não corram tanto”
como Ana da Inglaterra, rainha por mil dias,
trancada na Torre de Londres
de onde não mais sairia
como Inês de Castro, coroada morta,
após chorar no Mondego
sua fonte de lágrimas
como a aragonesa Yzabel,
rainha santa, Clarissa sem votos
e dona da paz
como a rainha mãe Frigga
dona dos destinos dos seres
e dos mistérios do sangue
E ao não pensar na partida
você acordou todas elas
e me fiz santa, louca, guerreira,
sangrenta e morta
E todas lhe tornarão verbo
sonho e pesadelo
desespero e razão
Imagem cruel de Sísifo
e o retrato da extinção.
CORPUS CHRISTI
Bem aventurados os que choram
e maldita sejas como todas as mulheres
Maldito o amor por ti amado
e a dor que teu corpo sofreu
Maldito o rasgo de teu útero
encharcado de sanha e fúria
Maldita a injúria sofrida
que nem a prostração terminou
Maldita menina pelo teu gênero
por receberes as penas e as pedras
Maldito o reino que um dia será teu
onde não aplacarás as dores
nem as lembranças da maldita matilha
que tua alma corrompeu
E OS CAVALOS
A luz ficou guardada
trancada dentro deles
enquanto a noite
se fazia labirinto
Para sair era necessário
navalhar as horas
e jogar os cortes
no fundo do mar
Mas o mar perdera o fundo
e eles perceberam
que não bastava vida
Era preciso mastigar sombras
entregar almas
lavar os cavalos
polir a prata
Outros precisaram guardar os olhos
tecer mantas e perguntar
quem inventou o criador
Na escuridão, a certeza
de que Joyce gritara
que cavalos selvagens
não hão de arrancar isso de nós.
BARDO
Wikepediamente falando
nasci em 1620
Séculos depois
a vida nos fez encontro
você carne, eu, ossos
Por amor
reconstruí meu esqueleto
com argila, areia, carne e sal
Ele é o exército que preciso
para guerrear com os tempos
Nesse espaço de eras
assisto, pasma,
minha forma humana
recitar versos
para meus fantasmas.
Ana Maria Lopes é poeta e jornalista. Nasceu no Rio de Janeiro mas adotou Brasília como sua cidade do coração. Possui alguns prêmios literários como a 1ª colocação no concurso promovido pela Embaixada de Portugal, Jornal O Globo e Livraria El Ateneo e em concurso patrocinado pela Bloch Editora e a Baume&Mercier. Tem dois livros publicados - Conversa com Verso (LGE) e Risco (Verbis) - e poemas em blogs e jornais brasileiros e portugueses. Escreve no blog Poesia no Fim do Túnel onde publica poemas de autores brasileiros contemporâneos.
Ilustração : Melk Z Da