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Ana Maria Lopes - 5 poemas

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ENXURRADA

E de repente
essa súbita vontade
de chorar a vida inteira
em uma única lágrima.


O DESPERTAR

Quando você chegou
não pensou na partida.
O adeus foi esquecido no tempo

Dentro de mim, uivando em febre,
dormiam mil mulheres.
Despertaram. Despertei

como Joana, a louca de Espanha
andando com seu coração
por terras castelhanas

como Erzsébet, a condessa sangrenta,
bebendo a juventude, recusando a cova
no sangue de gente nova

como Maria I, piedosa e louca
espalhando pelo solo sua desdita,
pregão e pranto: “não corram tanto”

como Ana da Inglaterra, rainha por mil dias,
trancada na Torre de Londres
de onde não mais sairia

como Inês de Castro, coroada morta,
após chorar no Mondego
sua fonte de lágrimas

como a aragonesa Yzabel,
rainha santa, Clarissa sem votos
e dona da paz

como a rainha mãe Frigga
dona dos destinos dos seres
e dos mistérios do sangue

E ao não pensar na partida
você acordou todas elas
e me fiz santa, louca, guerreira,
sangrenta e morta

E todas lhe tornarão verbo
sonho e pesadelo
desespero e razão
Imagem cruel de Sísifo
e o retrato da extinção.


CORPUS CHRISTI

Bem aventurados os que choram
e maldita sejas como todas as mulheres

Maldito o amor por ti amado
e a dor que teu corpo sofreu

Maldito o rasgo de teu útero
encharcado de sanha e fúria

Maldita a injúria sofrida
que nem a prostração terminou

Maldita menina pelo teu gênero
por receberes as penas e as pedras

Maldito o reino que um dia será teu
onde não aplacarás as dores
nem as lembranças da maldita matilha
que tua alma corrompeu


E OS CAVALOS

A luz ficou guardada
trancada dentro deles
enquanto a noite
se fazia labirinto

Para sair era necessário
navalhar as horas
e jogar os cortes
no fundo do mar

Mas o mar perdera o fundo
e eles perceberam
que não bastava vida

Era preciso mastigar sombras
entregar almas
lavar os cavalos
polir a prata

Outros precisaram guardar os olhos
tecer mantas e perguntar
quem inventou o criador

Na escuridão, a certeza
de que Joyce gritara
que cavalos selvagens
não hão de arrancar isso de nós.


BARDO

Wikepediamente falando
nasci em 1620
Séculos depois
a vida nos fez encontro
você carne, eu, ossos

Por amor
reconstruí meu esqueleto
com argila, areia, carne e sal

Ele é o exército que preciso
para guerrear com os tempos

Nesse espaço de eras
assisto, pasma,
minha forma humana
recitar versos
para meus fantasmas.







Ana Maria Lopes é poeta e jornalista. Nasceu no Rio de Janeiro mas adotou Brasília como sua cidade do coração. Possui alguns prêmios literários como a 1ª colocação no concurso promovido pela Embaixada de Portugal, Jornal O Globo e Livraria El Ateneo e em concurso patrocinado pela Bloch Editora e a Baume&Mercier. Tem dois livros publicados - Conversa com Verso (LGE) e Risco (Verbis) - e poemas em blogs e jornais brasileiros e portugueses. Escreve no blog Poesia no Fim do Túnel onde publica poemas de autores brasileiros contemporâneos.

Ilustração : Melk Z Da


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