Poderia estar em London London,
ou à beira do Rio Sena
dizendo eu te amo.
Ainda na Itália felinniana
a pousar na Fontana di Trevi
feito Anita Ekberg.
Poderia, mais simples,
estar em Igatu
numa caverna daquela
esquecida do mundo,
ouvindo o canto dos mosquitos
e das cigarras.
Ou no sul do País,
na Casa de Farinha de meu compadre
Akira. Poderia estar lá lhe abraçando
entre um gole e outro de poesia.
Tudo, tudo onde eu poderia estar agora
seria o ápice, a glória, a leveza.
Mas não estou. Chego a ter certeza
de que a vida é um imbróglio desgraçado
e quem se salva disso está numa melhor.
Um poema pode ser antipático
como um dia de domingo
solitário e ranzinza
Como o bate-estaca
de uma casa em construção.
Um poema pode ser chato,
grande à beça, tal qual aquela festa
cheia de pompas, em que você
mesmo convidado,
se sente um penetra.
Um poema pode ser uma peste,
comichão que dá na gente e nos afasta
de tudo; um poema pode ser
o dilúvio: água entrando no mundo
e o mundo se acabando.
Um poema, enfim, pode ser ruim.
Indesculpável, imperdoável, insuportável.
Um poeta, portanto, pode ser um monstro
uma miséria, um defunto que não deveria
ter voltado do outro lado.
Estranha a ausência
que a morte borda:
ponto em cruz num pano
branco
todo branco
sem luz.
O desaparecimento
pleno e sem dúvidas.
O suor que não mais habita
as camisas penduradas
no cabide
As cuecas todas limpas.
Que assepsia a morte tem!
Higiênica e louca
Tira toda a marca de alguém
do mundo
com uma vassoura de bruxa.
Imagino que toalhas usarei,
as iniciais guardadas em baús
fechados
com anáguas de renda
e espartilhos dourados.
Imagino as malas chegando
nas cargas do trem
nós descendo as escadas
de mãos dadas
roubando para sempre a eternidade.
O toque no teu rosto, minhas mãos
sem luvas, meu cabelo sem coque
meus pés sem meias.
Imagino nós dois chegando juntos
nessa estação única
onde talheres de prata nos esperam
numa mesa farta.
A alcova pronta, e num canto
o tempo que nos foi dado:
tantos séculos, passados
todos eles congelados
ali, ao lado, nos olhando:
nós dois, lírica claridade
solares, intensos...
E a música invade.
Tão fácil e tão bom -
lhe garanto -
conjugar a devassidão
comigo:
explorar suas cavernas
seus jazigos
E a ressurreição
de cada delito.
* * *
Ângela Vilma nasceu em Andaraí-Ba, em 10/11/1967. Publicou, de poesia: Beira-Vida (1990); Poemas escritos na pedra (1994); Poemas para Antonio (2010) e A solidão mais funda (2016). Participou de algumas antologias poéticas, como Concerto lírico a quinze vozes - Panorama dos novos poetas da Bahia (2004).