[o sertão sou eu]
capim seco
corta pele
atinge carne
longe gado cai,
gado só fica em pé com água
vovó quase não conhece
terra molhada
sandália minha brilha,
pé de solas avermelhadas
desci do salto
passeio na estrada do tempo
corpo tem necessidade
de estar perto da alma
corpo quer morar em casa
corpo precisa adormecer
ouvindo sua voz
canto do galo celebra milharal
água chegando na caixa
paredes ficam frias
afundo surda em colcha de pano
cada retalho tecido pela desistência
de um bicho
afogo muda em cílio de pavão
pés repousam na rede
chaleira geme
capim santo
alma despida de cidade
dor se despede
deixa corpo aos poucos
chove
corro contra o vento
vejo um cavalo
que se prepara pra atravessar a rua
paro
olho pro cavalo
enquanto ele me olha
dois homens passam
um risco
entre nós
e gritam “gostosa”
eu quase caio
o cavalo se assusta
e nunca mais volta
vou com ele
ser acrobata e não gostosa
catarata e não gostosa
dálmata e não gostosa
geneticista e não gostosa
gaivota e não gostosa
pateta e não gostosa
otimista e não gostosa
passeata e não gostosa
ultravioleta e não gostosa
violonista e não gostosa
poeta e não gostosa
ser cavalo
além de gostosa
* * *
Regina Azevedo é uma poeta brasileira nascida em Natal-RN em 2000. Autora dos livros "Das vezes que morri em você" e "Por isso eu amo em azul intenso", além de fanzines e outros projetos. Mantém o site www.reginazvdo.tumblr.com