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Terra à vista - Fernando Paiva

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Ilustração: Carlos Henrique Reinesch



Foi um sonho que o Dimitri teve. Minto, que eu tive.

É uma sensação comum nas viagens interplanetárias com coma induzido sonhar como se fosse outra pessoa.

É uma sensação comum nas viagens intercerebelos sonhar como se estivesse em coma induzido no corpo de outra pessoa em uma viagem interplanetária.

A Universidade Autônoma da Lua é uma obra icônica do modernismo espacial. Seus prédios foram desenhados tendo como inspiração o que eu chamo, ou o Dimitri chama, de futuro do pretérito, aquele design futurista dos anos 1950 da Terra, com traços curvilíneos, vãos espaçosos, gigantescos painéis de vidro em peça única, variações de branco e de cinza. Tudo meio etéreo, meio Brasília, meio Finlândia, meio Niemeyer, meio açucareiro neoconcreto, meio iglu de papel, com detalhes em aço escovado. Os alojamentos são virados para a Terra, a nossa lua azul, sempre à vista, para que não esqueçamos do nosso passado, da nossa origem, do umbigo de todos os umbigos, se é que vocês me entendem.

Porque não é fácil me entender, especialmente, ou espacialmente, depois que completei o pós-doutorado em arte-tecnologia na UAL. Nós, acadêmicos, passamos tanto tempo falando para o próprio umbigo que acabamos por criar dialetos compreensíveis apenas entre nossos pares, quando não apenas por nós mesmos. Línguas umbiguistas, tantas a perder a conta, todas à beira da extinção, por terem apenas um falante vivo, seu criador e único tradutor. Eu sou a minha língua.

Meus experimentos com expressionismo imaginário em exocerebelos geraram muita controvérsia. Houve quem me acusasse de haver gravado ondas cerebrais sob o efeito de psicotrópicos terrestres contrabandeados por algum desses arqueólogos que insistem em voltar para o nosso planeta em busca de qualquer resto de História que tenhamos deixado para trás. Não poderia ser mais caluniosa tal afirmação. O que sinto quando crio é bem próximo do que sinto quando sonho.

Dimitri veio me visitar na universidade um dia. Acho que tinha marcado um show no campus, num desses festivais independentes que alguma agência de viagens espaciais patrocina trazendo cantores de vários planetas para tentar fingir que o universo é tão pequeno e próximo e aconchegante... como se não tivesse sido necessário viajar sei lá quanto tempo e espaço para chegar ali, alguns cantores mais barbados que outros pelo efeito do longo período em coma induzido.

O que eu lembro bem, se lembro bem, é que Dimitri cantou uma composição nova que falava sobre terrismo, palavra da qual nunca gostei. Deveria querer dizer saudade da Terra, mas para mim sempre vem à mente terrorismo, terrível, não sei. Esse sentimento merecia uma palavra mais bonita. Algo que acalentasse os terráqueos depois da diáspora espacial.

A beleza que um dia foi a Terra os nativos espaciais nunca poderão entender, a não ser pelos livros e pelas memórias de terráqueos transportadas por exocerebelos. Mas não é a mesma coisa. A gente sabe que não é. Bobagem, não devia ser tão bonita assim, disse meu filho uma vez, como se fosse um além-terrestre falando. Camilo nasceu na Terra, mas ficou lá apenas dois anos. Na prática, se sentia mais como além-terrestre do que como terráqueo. Não guardava nenhuma lembrança da vida na Terra. Duvido que fosse mais bonita que Saturno, continuou. Não se trata de ser bonita ou não, respondi, mas era feita pra gente. Não há outro lugar assim no universo. Feita pra gente, ele repetiu em tom insolente. Quem diria que ele, meu filho, viraria mais tarde um arqueólogo terrestre? E que viajaria tantas e tantas vezes, idas e voltas, para a Terra, berço de seus pais, digo, eu e Madalena? Não foi por terrismo que escolheu estudar arqueologia. Foi para ficar mais próximo da mãe, ou da história dela, já que não tem tempo de visitá-la naquele planeta distante que Madalena escolheu como lar. Camilo pesquisa movimentos feministas terrestres, ou o que restou deles, a história fossilizada de um tempo em que as mulheres ainda precisavam lutar pela igualdade de gênero, como ainda fazem em planetas que não seguem a legislação universal de direitos dos entes vivos e presumidamente vivos.

Sempre que volta da Terra, meu filho vem me visitar. Como andam as coisas no antigo planeta azul?, eu pergunto. Não dá nem mais para ver o asfalto na Presidente Vargas, acredita? O Cristo Redentor continua de pé? Continua, firme e forte. Mas perdeu a mão direita. Deve ter sido algum raio. O período de tempestade de raios está mais longo, dois, três meses até. Cada vez temos menos janelas para uma descida segura ao longo do ano terrestre, ele comenta.

Suas aterrorizantes descrições do que sobrou deveriam me fazer sentir medo pela sua profissão de arqueólogo terrestre. Qualquer outro pai pediria para que largasse isso, que escolhesse qualquer outro trabalho, mas, ao contrário, eu o alimento de perguntas e mais perguntas com o objetivo de manter vivas as minhas memórias. Nada mais egoísta, reconheço. E faço pior: digo que preferiria viver setenta anos na Terra do que a eternidade no espaço. Nada mais terrista, ele responde. A verdade é que o tempo perdeu o sentido fora da Terra, filho. A vida não combina com a eternidade. A vida combina com a morte?, ele pergunta. Sim, claro que sim. Vida, tempo e morte são inseparáveis. Ou assim era na Terra, enquanto o homem ainda acreditava em Deus. Camilo não deu prosseguimento àquela conversa. Como sempre, não gostava de falar sobre Deus ou a falta dele no espaço. Mudou de assunto: abriu a mochila e me mostrou um saco cheio de cogumelos trazidos da Terra. Vai experimentar um chá comigo hoje?, ele pergunta. Acho incrível que ele passe pela polícia espacial com cogumelos terrestres, mas evito questioná-lo. É um adulto, quase-eterno, enfim, sabe o que faz. Qual o efeito desse?, pergunto. É um alucinógeno. A sensação é parecida com aquela do coma induzido em viagens interplanetárias, sabe? Como um sonho?, eu pergunto. Às vezes você se sente como se fosse outra pessoa, um amigo próximo, um parente, ele diz. Não quero me sentir como ninguém. Queria era ser mais eu mesmo. Queria explorar as profundezas da minha memória, como um arqueólogo de mim mesmo, e lembrar mais detalhes da minha vida terrestre de dois séculos atrás. Queria me lembrar dos dias em que eu e sua mãe estávamos apaixonados e passeávamos abraçados pela orla do Rio de Janeiro. Para a memória há outra espécie de cogumelo terrestre... Posso tentar buscá-lo da próxima vez, ele comenta, enquanto começa a preparar o chá. Não vai querer mesmo? Enquanto ele ferve a água, eu assovio a melodia da música do Dimitri sobre terrismo, sem conseguir me lembrar da letra. Ele serve duas xícaras. Pai, você devia gravar sua experiência em um exocerebelo. Para quê? Para depois lançar um livro-pensamento. Ninguém vai me entender. Camilo ri. Não tem problema, você se traduz. Não será necessário, respondo. Enquanto o tempo passa, tudo faz sentido.


Conto de "Depois que o tempo passar, Madalena" (7letras, 2016).



Fernando Paiva nasceu em 1977 no Rio de Janeiro. É jornalista especializado na cobertura do mercado de tecnologia móvel. Desde 2011 edita o site Mobile Time. É autor dos livros Carta para Ana Camerinda (Ibis Libris, 2004), Salvem os monstros (7Letras, 2010), Somente a verdade (7Letras, 2013), Pedro vai à Terra (Megamíni, 2015) e Depois que o tempo passar, Madalena (7Letras, 2016). É também compositor e guitarrista das bandas A Última Peça e Luisa Mandou um Beijo.


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