Dos ombros
De atravessar o chão
mergulho sem aviso
sabia de cor as linhas
da calçada e
curvatura dos tombos
os ombros de desdém
das gentes olhando a
contratura do espaço
que abrigaria corações
(ou deveria)
de lamber o meio-fio
decepções
em desaviso
a cada abraço
frio e liso
solto, esquivo
foi largando
a cada esquina
sacolas de expectativas
meses tantos idos
ainda encarava
linhas de calçada
o meio-fio lambia
ainda vinha abraço frio
(as sacolas menores)
o liso, o liso e
os ombros das gentes
(sacolas findam)
esfrega as mãos, de poeira
ali então
nariz no meio do meio-fio
se encanta por passarinha
que sem ombros
não desdenha
e com penas
só abraça
nunca liso, nem frio.
pé de coelho
o coelho está vestido
de preto
remói em dores
o coelho
corre de náusea
tritura o tijolo
que o pé prendia
corre da náusea
o coelho, o preto,
dores no pé
farelos do tijolo
não assopra
porque é coelho
salto em branco
madrugam dentes imensos
sonha
pato, colibri, pavão
sonha
gato, bem-te-vi, leão
desponta sol
estranha os dentes
acorda
em preto
não voa
não ruge
nem salta
morde a língua
dói o pé
não assopra
ainda é só
o coelho
Reboco
Rachaduras em paredes de casas com falta de tinta
Chuva fina que invade as rachaduras molha os pés do cara com sede
Com fome
Confuso
Os pés frios
Meninas que nunca se viram apertam o passo no beco da rua
Meninas têm medo de caras que nunca viram
Juntas apertam o passo
Aperto solidário, no peito
Franzem a testa, cobrem os peitos com cadernos de doze matérias
Ciclovia interrompida por mais uma faixa
Outra reta de acolher carros que correm
Bicicletas param
O cachorro atravessa só
O cachorro querendo comida e um canto na sombra
Hoje quer comida e lambida na sobra
Hoje ele não quer ser adotado por você
Em casas sem paredes insetos invadem frestas e rachaduras
A dengue dá febre
A gripe, a saudade e o desejo dão febre
A vida tem corrente de vento frio
Nem sempre cobrimos as frestas com cimento
A tempo
Qu4tro
quatro anos antes você jurou que era a última vez
beber seria então só em datas especiais
você deixou todas elas especiais, e tomou todas
aos quatro não se sabe bem
de palavras escritas
que pais são humanos
e os humanos nem todos são pais
ou o que te aguarda lá na frente, ao acordar, crescido
não se percebe se é drama ou quando
ou comum ou complicado
aos quatro se supera, se vive apenas
coragem de criança e resistência
inimitáveis
irreproduzíveis
quatro vezes você jurou aos quatorze
não ter mais medo
depois prometeu parar de jurar
você jura?
quatro para às onze e acabaram
os comprimidos
os soluços
os abraços antes de deitar
e você nem jura mais
aproveita, cresce, tropeça
se diverte de quatro ou
na missa às quatro e quinze
chama seus antigos amigos invisíveis
e saem os quatro a cantar na rua, agora mesmo
faltando quatro linhas pro final
saiam cantar na rua!
vocês, os amigos tortos, os velhos, os invisíveis
até os indizíveis, vão! jura?
* * *