Por Adriane Garcia
Ler Tara, de Linaldo Guedes, é uma grata surpresa. Não é sempre que nos deparamos com um livro temático sobre sexo, e que não aflua para o puramente vulgar ou para uma antilírica tão exarcebada que faça perder toda força póetica ou ainda, perder aquela fronteira controversa entre o erótico e pornográfico; mas que ela existe, existe.
Tara é erótico, sem medo de sê-lo, e é também um livro de poesia, com tanto que há de bom no gênero: rico, ritmado, diverso em referências, leve, mas sem negar a dor, mesmo das relações onde o que está envolvido é também o prazer sexual.
Em tempos de liberdade total da palavra (como vocábulo), mas de uma vigilância acirrada da palavra (como ideia), Linaldo Guedes vem construir um livro onde o sexo é heterossexual, onde o desejo é do homem pela mulher e onde a mulher é o lugar onde vai morar este desejo. É esta variante sexual que Guedes vivencia em seus versos, é sobre sua existência real que fala, é sobre o sexo como matéria, é sobre o eu-lírico que experiencia o encantamento pelo sexo feminino, o prazer pelo gozo que o sexo oferece e os sentimentos que podem acompanhá-lo.
Em alguns poemas, Tara traz como conflito a tentação, sexo como força possuidora que desordena os sentidos, que nem sempre é confortável e bom. Tentação, consequentemente, faz-nos pensar na ideia de castigo. Quantas gerações não foram “formadas” associando o sexo ao pecado?
Por vezes, estará ligado à violência, ao sangue, ao vermelho; não por acaso, a cor do líquido menstrual que, consciente ou inconscientemente, remete à dor do fruto perdido, do fruto não amadurecido nem concebido. A frustração última da natureza no ato sexual. Sexo também na forma de instinto, espécie de escravidão e de música.
Chama a atenção uma força sensual que alguns versos destacam nos músicos. Um músico, e seu instrumento, ganha sempre uma estatura maior do que aquela que o homem simples (sem o instrumento musical) teria. Mais de uma vez esta ideia que une potência de vida, de sexo, ao corpo tocado como instrumento que emite sons, resposta, será contemplada. A intuição de que o corpo toca e ressona. O que Linaldo Guedes faz é perceber esta sugestão, transmutar essa força bruta em construções belíssimas, com esta:
O anjo e o sax
na madrugada melancólica
um anjo distraído
absorve a vida
no toque beat de seu sax
do outro lado da noite
alguém bebe aflito
o singelo sonho
de sangrar
com prazer
os seios
satânicos
do anjo
saxsolitário.
Tara é uma viagem aos elementos deste universo, ao fetichismo, à felação, à cunilíngua, à masturbação, uma celebração deste bicho cultural, que reinventa o sexo, que amplia mesmo sua essência e que, por fim, não consegue aceitá-lo apenas mecanicamente, como os outros bichos; que faz do sexo algo maior, a resolução, equivocada ou não, para carências outras, muitas vezes com “fúria e urgência”:
a dor
fazendo versos
nos caracóis de teu sexo
Privilegiar a cama, como lugar do humano, lugar de mistérios e de metamorfoses, lugar do encontro com o outro corpo:
em frenesi
você respira deitada
com um estranho
sorriso ácido no olhar.
Nada de ilibado: libido; um discurso feito de beleza, para o reino de Eros e seu domínio:
ainda seco meus olhos
nos cabelos de tua boceta
A poesia de Linaldo Guedes, em Tara, refaz, reorganiza este caminho que vai do tesão, da conquista ao ato. Que leva à angústia da dúvida sobre a aceitação e à alegria do recebimento e da reciprocidade.
O que eu não falei ainda é que Tara também é um livro de amor e devoção, onde o sexo é um rito de adorar e não de poder.
***
Tara e outros otimismos
Linaldo Guedes
Editora Patuá
2016
Adriane Garcia é poeta, com formação em História, Arte-educação e Teatro.