Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

A loja de presentes do rio Estige - Bruno Marafigo

$
0
0
Ilustração: Bruno Marafio


–Espero que você tenha gostado, porque o show acabou– diz um velho se decompondo lentamente dentro de um roupão preto, não é uma visão agradável.Mas de certa maneira não estamos todos nos decompondo lentamente? Uns mais que os outros.–Sinto muito, mas é hora de ir– diz ele estendendo aquela mão decrépita e cheia de ossos, ossos demais se você quer saber...Dou um passo pra fora da cama e pra dentro da escuridão que é o meu quarto, minha cama flutua através do espaço vazio.
–Não se esqueça de passar pelo caixa, prefiro dinheiro vivo...–pego a mão dele e olho dentro daqueles olhos negros, terrivelmente familiares.
Flutuo por alguns segundos antes de sentir meus pés tocando o carpete velho do chão. O vazio negro é lentamente preenchido, meu abajur quebrado, um beta nadando em círculos em sua prisão de vidro, a luz da manhã entrando pela janela, vou me lembrando de todos esses pequenos detalhes, lembro-me de onde parei no dia anterior.
A nevoa na minha cabeça se dissipa limpando minha vista, tudo volta a parecer comum novamente, tingido de um cinza mundano.Menos o maldito peixe.Alguma coisa nele me deixa agitado. O velho continua a se decompor.
Encontro meu caminho até o banheiro, puxo o espelho pra pegar a pasta de dente e tenho um momento de lucidez.
O peixe vive em uma realidade simulada, meio balde de água é tudo o que ele conhecerá do mundo durante toda a vida dele, mas se ele tentar sair, ele morre. O velho continua atrás de mim e continua a se decompor. A carne de seus ossos se desprende, cai no chão e some.Sua pele tem uma textura estranha como se descascasse em mil flocos de neve suja. Ainda assim só consigo pensar no peixe.
Se ele pulasse pra fora em direção à liberdade sufocaria lentamente, se debatendo em um tapete fora de moda, é meio depressivo.
Lá fora só existe o barulho do transito, milhares de executivos cavalgando bombas atômicas até seus arranha-céus, canhões do tamanho de casas disparam os executivos em alta velocidade, escuto uma bomba modelo Peter-Sellers de 2008 passar zunindo pela minha janela.
Bato o espelho com as costas da mão e lá está ele, o maldito peixe!
– Como diabos você foi parar ai? – digo em voz alta, o velho se decompondo sorri.–Não tenho o dia todo filho...– diz ele. O peixe olha pra mim de dentro do espelho com aquela cara de idiota.
Jogo água na minha cara e esfrego meus olhos com força, o peixe ainda está lá com o mesmo olhar estúpido. O velho também, mas por algum motivo eu nem ligo, é como se ele estivesse ali minha vida toda.
Enfio a cabeça pra dentro do quarto e o aquário está vazio, a água ainda agitada pelas guelras dele.
–Como você fez isso?Como?– ele não responde, fica lá dentro nadando em círculos com cara de idiota. Afinal é o que os peixes fazem, não sei o que eu estava esperando que acontecesse.
– Maravilha, mais um que vai levar meses até a ficha cair. Não é só porque sou obrigado a estar em todos os lugares ao mesmo tempo, que eu tenha que gostar de fazer isso – ignoro o velho só consigo pensar em como o peixe foi parar dentro do espelho.
Tateio pelo vidro procurando uma abertura, o peixe acha que eu estou brincando com ele, tenta tocar a ponta dos meus dedos. Sinto uma irregularidade no vidro e passo a unha em cima de um pedacinho que descasca.Uma gotinha de água escorre da rachadura.''Meu Deus eu tenho que ligar pra alguém!''penso.Corro pelo corredor e coloco a mão no telefone.''Ninguém vai acreditar se eu contar pelo telefone, preciso chamar alguém até aqui!'' uma gota escorre pelo espelho e outra se forma logo atrás dela.''É, é isso! Vou ligar para o lugar que fabrica o espelho!Não, isso seriaburrice...''
Água escorre da rachadura. ''E se o peixe voltar para o aquário enquanto eu chamo alguém pra ver? E se eu sou o único que consegue enxergar o peixe? E se não tiver peixe nenhum?''água escorre da rachadura e pinga na pia.
''Certo se eu estiver alucinando o peixe ainda está no aquário, o que significa que se eu colocar a mão no aquário eu vou conseguir senti-lo!Sim, isso pode dar certo!''
Tiro meu anel e mergulho a mão no aquário, nada, nem sinal, só migalhas de comida do dia anterior.
– Estranho não? Como algo desse tipo pode acontecer? Eu me pergunto... hum... – diz o velho, dessa vez ignoro-o completamente. ''Puta que pariu, eu tenho que chamar alguém aqui'' dou mais uma olhada no espelho do banheiro e lá está ele como se nada estivesse acontecendo, a água escorrendo da rachadura, pingando na pia e formando uma poça. O velho me segue pela casa, parece impaciente, mas não fala mais nada.
De repente a campainha toca, é minha carona para o trabalho. “Mas é claro vou pedir para que ele entre e não vou falar nada.Vou fazê-lo entrar no banheiro com uma desculpa qualquer e esperar para ver se ele nota. Se ele não comentar nada é porque estou imaginando tudo.”
Olho pela janela lá está Marcio tocando a campainha novamente. A ogiva nuclear estacionada em lugar ilegal. Aperto o interfone.
–Escute... Márcio? Eu sinto muito, mas me atrasei. Entra pra tomar um café que eu vou levar ainda uns vinte minutos– um chiado de estática que parece durar uma eternidade é interrompido pela voz impaciente de Márcio.
–Porra... cara... eu não posso me atrasar de novo! O chefe vai me dar uma mijada e quer saber? Não aguento mais lavar as roupas todo dia, o pênis daquele homem parece estar ligado a um hidrante!–ele tem razão, depois que revogaram algumas leis trabalhistas essa coisa toda saiu do controle...
–Olha Márcio eu sinto muito mesmo, mas preciso que você suba aqui um instante é muito importante juro que te pago todas as minhas horas extras pra compensar– ele reluta mais uns instantes, ameaça ir embora sem mim e então finalmente concorda.
–Ok, mas só quinze minutos!
Ando em círculos pelo tapete velho, o aquário continua vazio, e a pele do velho parece ter ganho um brilho dourado de um instante para o outro. Talvez eu só não tenha notado. Uma parte da bochecha dele cai no chão e desaparece. “Pelo menos ele tem modos o suficiente para não sujar meu tapete” penso eu. Batidas na porta. Finalmente ele esta aqui. Abro a porta como uma garotinha adolescente esperando o namorado. Márcio está com a cara de alguém que teve um peixe podre costurado ao nariz cirurgicamente, nunca se torna agradável, mas você se acostuma. Espero um instante por uma reação e nada.
– Você está vendo ele? – digo apontando para o velho.
– Claro, é o Χάρων– diz Márcio.
– Como você pode saber meu nome e ainda estar aqui? Humanos de merda... – o velho começa a resmungar tão baixo que eu paro de ouvir.
– Você me chamou aqui só pra ver o Χάρων? Acabei de deixa-lo esperando no banco de trás do carro... – o velho continua a resmungar.
– Mas ele estava aqui o tempo todo...– Marcio me interrompe impaciente.
– Ele esta pela cidade inteira... enfim podemos ir embora agora, porra?– diz ele já caminhando em direção à porta.
– Não, não era isso que eu queria te mostrar.
– Mostra logo então!
– Certo... certo... você entende de elétrica né? – Márcio está batendo os pés freneticamente. – Para de enrolar e fala logo! – diz ele.
– Ok, a lâmpada do meu espelho do banheiro está soltando umas faíscas mesmo desligada, estou com medo de começar um incêndio enquanto estou fora. Pode dar uma olhada pra mim? – Márcio solta um suspiro irritado e saixingando. Só agora noto uma poça d’agua se esgueirando por baixo da porta do banheiro. Márcio abre a porta e meio metro de agua vaza para fora como uma barragem estourada.
– Caralho! Porra! Meus sapatos! Você é um filho da... – quando os olhos de Márcio tocam o espelho ele congela, fica pálido como um cadáver e se joga de joelhos no chão, chorando. O velho diz a ele: – Infelizmente esse não é para você moleque, as pessoas se enrolam demais aqui e o lugar acabou criando uma economia própria... você emprestou dinheiro e não pode sair até pagar a dívida! – Márcio está soluçando e rezando ao mesmo tempo. A agua cai com força sobre sua cabeça, como um batismo. Sinto que ele poderia se afogar. O peixe dourado nada com todas as suas forças contra a corrente. Idiota demais para perceber o perigo.
– Vamos levante-se seu inútil! – diz o velho. O buraco no espelho aumenta, o peixe é lançado para fora passando a centímetros da ponta afiada do vidro, ele cai no ralo da pia e é engolido pelo cano. Reaparece no aquário. Márcio está caído de cara na agua sem se mover. – Justo o que eu precisava, vão descontar do meu pagamento... sempre descontam. Era tão simples antigamente... uma moeda aqui outra lá... daí eu comprei um roupão novo... quando eu me dou conta aqui é tudo fábricas e lojas... e neon... e bombas nucleares... e gravatas... e ternos... – o velho levanta Márcio pelos ombros e arrasta-o para trás da porta onde não posso vê-lo. A agua ainda escorre do espelho quebrado como uma cascata.
Entro no banheiro em meio à agua olho atrás da porta, nada além de ladrilhos e mofo. Eles desapareceram.
– Sinto muito por isso – diz a voz do velho nas minhas costas. Viro-me e vejo a agua do aquário escorrendo pra dentro do próprio vidro, como se houvesse um cano escondido por baixo do aquário. O peixe é engolido de novo e sai no espelho. Passa pelo buraco do espelho, é engolido pelo cano e sai novamente no aquário. Como se estes estivessem interligados.
– Para onde ele foi?
–Isso não é da minha alçada eu só deixo as pessoas na estação – diz o velho. A agua está na altura dos meus joelhos agora. Noto a pele do velho mais uma vez. São escamas, seus olhos são os olhos negros de um peixe, o nariz do velho descola do rosto e cai na agua.
– Estou morto não estou? – o velho sorri.
– Acho que te subestimei moleque, alguns ficam aqui por anos – diz o velho com um sorriso que se forma quando seus lábios caem e os dentes ficam a mostra, ele agora tem guelras no pescoço.
– O pior são os diretores gerais e gerentes de empresas. Nunca aceitam que estão mortos vem para o limbo e abrem empresas. E são contagiosos também. Agora os deuses insistem em ser chamados de gerentes e supervisores. A gerência fez um monte de mudanças você vai ver... – o peixe é jogado pelo espelho novamente, mas agora com a pressão da agua ele vai parar no chão e nada livremente pela casa toda. A agua esta na minha cintura agora.
– Certo, venha comigo moleque – o velho para no meio da sala, então começa a se elevar acima da agua. Um barco surge a seus pés, ele me puxa para cima. À distância escuto a explosão de uma bomba atômica, um empresário chegando ao trabalho. Durante o clarão vejo a silhueta de crianças indianas na parede, costurando. Então o clarão termina e elas desaparecem. Subo no barco com o cogumelo da explosão ainda brilhando na janela.
– Isso quer dizer que eu vou ter que continuar trabalhando até depois de morto?
– Bom... sim e não. Você não morre mais então se estiver sem dinheiro só vai parar na rua e ficar sem comida, mas fome dói garoto. Você vai querer ter algum dinheiro. Sem falar que no inferno te cobram a conta do gás, tridentes custam dinheiro também alguém tem que pagar a conta...
– Eu vou para o inferno?
– Receio que sim – diz o velho com uma cara despreocupada. O barco faz uma curva e entra no meu corredor, mas agora ele se estende por uns cem metros antes de fazer uma curva.
– Mas você falou que não sabia pra onde as pessoas iam... – falo sentindo-me traído. Colunas jônicas aparecem no corredor, meio antiquado para o meu gosto... Mas hey, quem sou eu pra julgar? O barco segue.
– É eu menti, não queria alongar a conversa, mas você percebeu, a gente começou a conversar... e bem... aqui estamos – em algum ponto as paredes de reboco se transformaram em pedras, eu nem vi quando.
– Márcio está no inferno também?
– Não, foi para o céu, pobre filho da puta. Na verdade você deu sorte...
– Porque diz isso?
– Tem noção de quanto é o aluguel de uma nuvem? No céu todas as nuvens são por imobiliária e ninguém tem fiador... Para ser fiador no céu você precisa ser pelo menos um semideus – chegamos à curva, o velho manobra o barco e eu avisto uma cancela mais a frente.
– Ah, o pedágio... esqueci de te fazer parar em um caixa eletrônico, bom não tem tempo para isso agora. – o barco para logo antes da barreira e o velho me cutuca. – E ai? Não vai fazer nada? Está esperando um convite formal?
– Eu tenho que pagar?
– Lógico? Morreu com alguma grana no bolso... – um braço se estica para fora da cancela, é o velho de novo – ...tem que morrer uma grana na minha mão! – continua ele do outro corpo. Entrego o dinheiro com certa mágoa.
– Desculpe garoto, tenho que ganhar o pós vida de alguma maneira. – a cancela se levanta e continuamos pelo rio.
– Alias, me faz um favor. Se por acaso reencarnar avisa a galera para parar de por moedas nos olhos dos mortos. Odeio moedas. Manda colocar dinheiro vivo, notas, cédulas, ou cartões de crédito mesmo. Tem cobertura aqui agora, menos Elo. Elo não pega – o velho continua a remar já posso ver o porto no horizonte.
– Pedi para Jesus passar o recado, mas o garoto tem contatos. Sabe como é, filho do chefe e tal... Arranjou um emprego de subgerente e falou que não põem os pés na terra nunca mais... Chegamos!
– O que eu faço agora?
– Segue reto, a saída é pela loja de presentes, tem que comprar alguma coisa se não o Cérbero não libera a porta. Cuidado com a cabeça! – não adianta nada bato a cabeça na pedra assim mesmo, entro na loja de madeira não tem outra porta.
Lá dentro tem pequenos diabinhos de pelúcia, um bonequinho articulado de Hades na pilha de promoções, Lúcifer vem com mais acessórios e custa mais caro. Deve ter mais saída. Agarro um cachorrinho de pelúcia com três cabeças, talvez agrade o balconista.– HEY, tira as mãos da mercadoria! Quebrou levou! – pelo jeito não.
– Tudo bem, vou leva-lo – Cérbero sorri com as três cabeças ao mesmo tempo.
– Hum, tem bom gosto garoto. Pode passar. Se precisar de emprego fala que eu te mandei.
As portas se abrem alguém me dá um cartão ponto feito de carne humana.
– Coloca ali pra marcar a hora de entrada – diz um demônio apontando uma cabeça de vampiro decapitada.
– Você não vai me espetar com esse negócio? – digo apontando para o tridente.
– Há e gastar a ponta? Eles me cobram o tridente quando tem que trocar. Estou guardando o meu para quando o Celso Portioli morrer.
– Boa escolha.
– Agora ao trabalho! A rainha do inferno está te esperando, ela não tolera vagabundo.
– Por onde?
– Bem ali.
O demônio me aponta para uma sala com portas maciças de madeira e três metro de altura. Na porta tem um busto da AynRand. Comecei a entender o desprezo do barqueiro...

Humanos de merda! Nem morrer é de graça.




Bruno Marafigo é um artista plástico e escritor curitibano, publica quadrinhos na internet desde 2011.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548