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Ilustração: Ismael Nery |
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1
Todos os dias penso em partir.
Mas sinto o lodo das pedras,
o deslizar dos peixes e
o calor molhado do ar
de minha terra / minha terra é vermelha /
arrastando-me as raízes,
e sou obrigado a ficar.
2
Todos os dias penso em partir.
Compro o bilhete,
dobro camisas,
separo a escova de dente.
Mas uma chamada interrompe a noite,
rasga o inverno sobre mim,
afastando suas bordas:
diz que quer me ver.
Deixo-me iludir / fui lembrado /
e decido ficar.
Tenho-me desgastado
Tenho-me desgastado mais do que poderia
dar de minhas dores, de minha fé oscilante,
de minha tímida alegria.
Os dias passam sem que eu lhes perceba a carne criativa,
tenho-me desgastado em horas tão vazias!
Não lhes pedirei socorro ou rezas, todavia
nem esse orgulho me livra de saber que me
tenho desgastado mais do que pretendia.
Tenho-me desgastado, senhores, e não lhes diria,
se este copo cheio, se este cigarro aceso
não fossem meu coração oco, não fossem minha alma fria.
Um violão folk
e o limiar da madrugada.
Todo o prédio diz que dorme,
e esse copo é tua estrada.
Não tens raiva, movimento,
não tens vontade de nada,
nenhuma crise se abriu.
Não tens nem identidade.
És esse uísque de Glasgow
envasado no Brasil.
Sobre os instantes solares
Você deve ter percebido,
se já foi dos que acordam cedo:
cada manhã tem seu ritmo.
O que quero dizer com isso
é que gosto muito das séries:
equilibram, não existindo.
O que se não há concebido
assim se explica nos dedos:
fora, razão; tato, no íntimo.
O que quero dizer com isso
diria melhor quem planta milho:
cadência lunar: promessa e medo.
Como, diante de mim, o círculo
grávido de sangue, subindo:
sem tirar do lugar, movê-lo.
O que quero dizer com isso
você já deve ter percebido:
se ali te vejo, aqui me excedo.
Louvado seja Deus que me deu
esta ignorância acadêmica das artes plásticas
sem a qual eu não teria descoberto o poeta Ismael Nery.
Louvado seja Deus por esta inveja grata e quase rancorosa
que sinto de Ismael Nery –
usurpador, com a conivência divina,
sim, profeta usurpador dos versos que eu jamais escreveria
sob outro nome, em outra época.
Louvado seja Deus que me sabendo impossível pintor
também me privou de ser poeta.
Sim, com alguma inveja mas sem nenhum rancor,
louvado seja Deus.
Eleazar Venancio Carrias nasceu em 1977, num sítio no interior da Amazônia. Divide residência entre Breu Branco e Tucuruí, sudeste do Pará. Publicou Quatro Gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2008 na categoria poesia. Publica, esporadicamente, no blog Coração Pervasivo e no Facebook. Em 2016 deverá lançar seu segundo livro, Regras de Fuga.