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Alforrias - Rita Santana

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Ilustrsção: Gustavo Martins



A Escriba

A estrela entregou-se ao negrume das nuvens
E sucumbiu ao despenhadeiro da Finitude.
Antes, cuspiu o seu grito de fogo
Sobre o plúmbeo das águas,
Sobre a baía do espaço todo azul.

Enquanto a escrivã das coisas vãs,
Sem contê-las - as estrelas -
Tremia diante do leme sem controle.
E via içarem suas velas acesas
Sobre montanhas de cinzas azuis.

A escriba crivada de falas
Perece do silêncio das Constelações

E da hedionda mudez dos Astros.



Abismação

Cá estou na Abismação de cada instante.
Arcada ao Par, sem tê-lo.
Arrastada no levante dos meus ancestrais.
Quilombola tecendo
O algodão doce
Das dúvidas
Dos dias.

Tear do tempo
A fiar o ócio dos meus ossos crus.
Alambique de saudades,
Pileque de tristezas.
Enquanto tu, moleque dos meus desmazelos,
Labutas na plantação de mandioca
E eu fio
A alforria dos meus cometimentos.



Agrestidade
                                                           
Tornei-me bruta
Após travar batalhas de tentares.
O tear do tempo cumpriu-se dentro do universo
E eu apenas cedi ao fim.
Almocei nua no último banquete
E acendi velas à mesa.

Arrumei minhas tralhas e deixei-as!
Alheias aos venenos da aorta,
Alheias aos anéis do abandono.

Deixei o feérico, o cupim, a cumplicidade das rotas.
Fiquei à deriva de mim mesma.
Feita toda inteira de atordoamentos
E mutilâncias.

Arrebatada de almas.
Pouco morta.



Deserto

Ausências cercam meu território desértico
E eu afugento galinhas imaginárias
Para parecer menos bamba na fotografia
Das civilizações esquecidas.
Ainda ontem estive mulher e foi bom.
Hoje, sou dada a versos e continuo a ser mulher.
Mas como dói.

Dói o silêncio inócuo dos suplementos
E o ostracismo estético dos Colossos de sal.

Quero a desmemória do efêmero,
Do fácil, e do tangível.



Eco e Narciso

Estávamos diante um do outro
Em botânico silêncio.
Era o lugar das águas.
Era o espelho das eras.

As portas frias e os dedos
Diziam a rotina das perseguições.

Nada nascia no estatuto das horas,
Apenas Eco e Narciso
Forjavam o absurdo do encontro
Em meio às valentias de Valentim.






RitaSantana é professora, atriz e escritora. Em 2004 publica Tramela (contos) - prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Em 2006 publica Tratado das Veias  (poemas) através do Selo Letras da Bahia, e em 2012 lança Alforrias (poemas). Como atriz, tem experiências em teatro, cinema e televisão.

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