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Ilustração: Aini Tolonen |
DANÇA
Sim, existe a dança:
o corpo solto avança
e recua leve nos passos
matemáticos, um, dois, um,
como se fosse mais fácil
viver num tempo menor,
brincadeira de criança
que sabe de cor o roteiro
e ri na hora marcada.
Fora da dança, o infinito
nos convida, nos seduz
com passos improváveis,
mas temos dois olhos,
apenas duas pernas,
e, sobretudo, duas mãos
onde só cabe um punhado
de estrelas.
Você já tem todo este tesouro
e ainda quer mais.
Se o mundo findasse hoje,
estava de bom tamanho.
Ouro fundido por séculos,
o sol feito à mão,
erguido a cada dia.
Você já tem toda a riqueza
e reclama que falta um pedaço
na fatia que você mesmo comeu.
Você queria que o gozo
durasse pra sempre,
que o corpo seguisse rijo
e acha que sai perdendo
quando troca cada dia da juventude
por outro novo da velhice.
Você tem toda a razão,
você agora queria ser deus,
mas não dá mais tempo.
METRO
Se o poeta conta sílabas,
o caos todo se ordena,
o dinheiro não acaba,
ou tudo é alheio, vento, vário,
e o poeta perde a conta,
perde o prazo, paga juros?
Se o coitado conta sílabas,
a incerteza se conforma,
as respostas andam em fila,
inconsciente se decifra
no meio da rua, dia claro?
Pois assim parecia ser
quando o poeta, quando o mundo
eram um número pequeno,
fácil de contar nos dedos.
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lustração: Aini Tolonen |
OVO
É fácil vender armas
a quem vive em guerra,
a um cérebro preguiçoso
vender a nova novela,
viciar um beija-flor
com água e açúcar,
a você e a mim mesmo
com a eterna desculpa.
É fácil ser o herói
que nunca entra na luta,
obrigar mais um filósofo
a ter que beber cicuta,
por em pé o ovo óbvio
a uma plateia obtusa.
O VELHO ILUSIONISTA
O velho ilusionista na tarde de madeira
e pouca luz.
E como está distraído,
quase sem existir por inteiro,
vamos entrar na sua aura de fumaça.
Atrás do pano surrado da sua alma,
baralhos marcados, cartuchos com panos coloridos,
nada disso se encontra.
Apenas um silêncio.
Silêncio não:
se escutar bem,
apenas imagens, pontos, linhas,
se virar tem barba,
se virar tem cabelo.
E um suspiro profundo,
cansado
por repetir os mesmos truques.
Mas, antes que pergunte
se quer largar tudo,
uma explosão de espoleta o projeta.
Para onde?
Poemas de "Typographo" (Editora Patuá, 2016).
Ricardo Silvestrin (Porto Alegre, 1963) estreou na poesia em 1985, com Viagem dos olhos, ano em que se formou em Letras pela UFRGS. Depois vieram Bashô um santo em mim, Quase eu, Palavra mágica (prêmio Açorianos de Literatura), ex,Peri,mental, O menos vendido (prêmio Açorianos de Literatura), Advogado do diabo, Metal (finalista Portugal Telecom e prêmio Brasília), Adversos e, agora, Typographo (Patuá, 2016). Na prosa, Play (contos) e O videogame do rei (romance), ambos pela editora Record. Na poesia para crianças, destacam-se Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (prêmio Açorianos de Literatura) e É tudo invenção, que integra a biblioteca básica do estudante brasileiro da FNLIJ. Foi editado no Uruguai, com o infantil Los seres Trock, e nos Estados Unidos, na Antologia Mundial de Haicai, Frogpond. É músico e integra a banda os poETs. Site: www.ricardosilvestrin.com.br