Balada para Vita Sackville-West
I
Sigo
pela calçada suja
da madrugada
Tão confortável
como se fosse um rapaz
Calças largas
camuflam
as coxas
Mãos nos bolsos
Cabelos curtos
Tão confortável
como se fosse um rapaz
Homem nenhum
tem ganas
de devorar-me
Levo uns rabiscos
no meu embornal
Mas
oh
e se desconfiam
que tenho boceta
no lugar de um pau?
Piso a calçada mijada
-Segura-
Como se fosse um rapaz
II
No poema
que iniciei há quatros séculos
uma tristeza puta
cuidadosamente
alfinetada
Há quatro séculos
expurgando versos de abismos
Há quatro séculos
chorando a princesa russa
que desliza
para sempre
numa pista de gelo
Há quatro séculos
cultivo um carvalho
dentro do meu embornal
Mas
oh
e se desconfiam
que tenho boceta
no lugar de um pau?
Dafne
Por um tempo
habitei no cerne de uma
estranha palavra
Do meu ventre se ergueu
imponente Sequoia Gigante
Avançou
expandindo os espaços entre
os ossos
rumo aos pulmões
e garganta
Explosão de ramagens nos cabelos
Flores breves
Esboços de vento e pólen
Ao redor
cada despencar de fruto
ocultando podridão
Me tornei alta
e plena de antiguidades
A cortiça
matéria morta que me reveste
o tronco
é o que retém em mim
a umidade
Tanta vida se agitando
por dentro
que definha
na superfície da casca
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Ilustração: Laura Camila |
Blue
Um blue
que me abrisse
inteira como
a língua dela
quando ela me come
Um blue
que me ardesse a ferida
Um blue que fosse janela de vidro
sonhando tempestade
Um blue
que nunca me acalentasse
Um blue
nos arredores daqui
que me atraísse
que me enganasse
Um blue
que
de amor
lentamente
me matasse
O deserto vermelho
Em minha solidão
mora um mar
de água transparente
e uma praia carmim
Como num filme
de Antonioni
Chego ao mesmo
tempo que o Sol
Parto quando a luz escapa
por uma fenda
no céu
Em minha solidão
moram coelhos selvagens
E um dia
de longe
vi um veleiro fantasma
desses que singram
os mares daqui
e os mares dos mundos
do lado de lá
Como num filme
de Antonioni
em minha solidão
as pedras cantam
como se fossem de carne
e doessem
Litania para quando descarrilarem os astros
Eu te supunha
asa
hélice
um retalhar de quedas
asa
hélice
um retalhar de quedas
Eu te sonhava
rito e rio
rito e rio
e te queria ajustada
a meu dia de chuva
e a minha saudade de árvores
a meu dia de chuva
e a minha saudade de árvores
Por equinócios e solstícios vários
te gozei
em poro e pelo
te gozei
em poro e pelo
mas eu era a puta
eu era a puta
e você tinha
a pedra
e a estaca
eu era a puta
e você tinha
a pedra
e a estaca
Por equinócios e solstícios vários
nos esfaqueamos
com furor igual
ao de quando o desejo
nos delirava
nos esfaqueamos
com furor igual
ao de quando o desejo
nos delirava
por equinócios e solstícios vários
Até que o sal
do mar da mágoa
vestiu de ardência
nossas carnes rasgadas
Poemas de "Movimento em falso" (Editora Patuá).
do mar da mágoa
vestiu de ardência
nossas carnes rasgadas
Poemas de "Movimento em falso" (Editora Patuá).
Simone Teodoro é poeta e mestra em Literatura Brasileira, pela UFMG. É autora dos livros Distraídas astronautas (Patuá, 2014) e Movimento em Falso (Patuá, 2016). Lê poesia compulsivamente.