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5 poemas de Simone Teodoro

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Balada para Vita Sackville-West

I
Sigo
pela calçada suja
da madrugada

Tão confortável
como se fosse um rapaz

Calças largas
camuflam
as coxas

Mãos nos bolsos
Cabelos curtos

Tão confortável
como se fosse um rapaz

Homem nenhum
tem ganas
de devorar-me

Levo uns rabiscos
no meu embornal

Mas
oh
e se desconfiam
que tenho boceta
no lugar de um pau?

Piso a calçada mijada
-Segura-
Como se fosse um rapaz

II
No poema
que iniciei há quatros séculos
uma tristeza puta
cuidadosamente
alfinetada

Há quatro séculos
expurgando versos de abismos
Há quatro séculos
chorando a princesa russa
que desliza
para sempre
numa pista de gelo

Há quatro séculos
cultivo um carvalho
dentro do meu embornal

Mas
oh
e se desconfiam
que tenho boceta
no lugar de um pau?



Dafne

Por um tempo
habitei no cerne de uma
estranha palavra

Do meu ventre se ergueu
imponente Sequoia Gigante

Avançou
expandindo os espaços entre
os ossos
rumo aos pulmões
e garganta

Explosão de ramagens nos cabelos

Flores breves
Esboços de vento e pólen

Ao redor
cada despencar de fruto
ocultando podridão

Me tornei alta
e plena de antiguidades

A cortiça
matéria morta que me reveste
o tronco
é o que retém em mim
a umidade

Tanta vida se agitando
por dentro
que definha
na superfície da casca




Ilustração:  Laura Camila

Blue

Um blue
que me abrisse
inteira como
a língua dela
quando ela me come

Um blue
que me ardesse a ferida

Um blue que fosse janela de vidro
sonhando tempestade

Um blue
que nunca me acalentasse

Um blue
nos arredores daqui
que me atraísse
que me enganasse

Um blue
que
de amor
lentamente
me matasse




O deserto vermelho

Em minha solidão
mora um mar
de água transparente
e uma praia carmim

Como num filme
de Antonioni

Chego ao mesmo
tempo que o Sol
Parto quando a luz escapa
por uma fenda
no céu

Em minha solidão
moram coelhos selvagens

E um dia
de longe
vi um veleiro fantasma
desses que singram
os mares daqui
e os mares dos mundos
do lado de lá

Como num filme
de Antonioni
em minha solidão
as pedras cantam
como se fossem de carne
e doessem



Litania para quando descarrilarem os astros

Eu te supunha
asa
hélice
um retalhar de quedas

Eu te sonhava
rito e rio
e te queria ajustada
a meu dia de chuva
e a minha saudade de árvores

Por equinócios e solstícios vários
te gozei
em poro e pelo

mas eu era a puta
eu era a puta
e você tinha
a pedra
e a estaca

Por equinócios e solstícios vários
nos esfaqueamos
com furor igual
ao de quando o desejo
nos delirava

por equinócios e solstícios vários


Até que o sal
do mar da mágoa
vestiu de ardência
nossas carnes rasgadas



Poemas de "Movimento em falso" (Editora Patuá).





Simone Teodoro é poeta e mestra em Literatura Brasileira, pela UFMG. É autora dos livros Distraídas astronautas (Patuá, 2014) e Movimento em Falso (Patuá, 2016). Lê poesia compulsivamente.


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