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Música na madrugada - Um conto de Cristiano Silva Rato

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02:22:22, após 24:00:00 horas – uma testemunha

apressei. dois disparos. uma multidão de silêncios serena a noite.

Desânimo. Em alguns espaços o desânimo se abate sobre meu corpo, o espírito não suporta a hipocrisia crescente e desconcertante de certos grupos caracterizados dentro de outra ilusão fora a habitual sociedade organizada pelo egoísmo, onde pensamos haver seriedade. Bem, já é quase noite, e o som desestrutura minha falseada paz e alguns acordes dissonantes de uma cuíca emergem junto ao terrível pesadelo tocado por antepassados que cruzaram de formas diversas o atlântico. Ah, eu tropecei em algo. Ridículo. Todos ridículos em suas preocupações efêmeras enquanto se esgueiram das circunstâncias historicamente feitas para o desaparecimento de corpos sem proveito para o estado real, ou o real estado de decomposição de um grupo de mamíferos em decomposição há alguns milhares de anos. Nunca conseguiram sentir. Meu dedo abstrato toca a face manchada pelo sangue que ainda não coagulou e continua escorrendo pela boca sem alma no momento do espanto em ver algo assim tão horrendo e tão normal. Não me esquecerei de você.

Outro local, outra hora, outra individualidade, dia anterior até o posterior.

Porra, você quer o quê? Cala a boca. Mais um sonho. Pego a caixa (de prozac), engulo um comprimido, felicidade, quase, instantânea. A tarde prometia um descanso prolongado dentro do meu mísero quitinete. Micro. Quarto-sala-cozinha. Banheiro-lavabo. O DVD ligado, sem filme, sem motivos para os quais foi pensado inicialmente, só músicas sem vinil. O plantão começa dezoito horas, e aqui sem saber o que fazer realmente. Meio dia. Treze horas. Quatro horas. O telefone toca, acordo, só então percebo que era o inconsciente buscando alguém além de mim. Abro a garrafa de cachaça e bebo uma, duas, três doses. Abro uma lata de cerveja, demoro uns dez minutos para bebê-la. Estou ficando velho. Saio para o trabalho, atrasado. Pego meu velho mp3, o mundo que se exploda em pedacinhos a partir de agora. O mundo é branco. Nós somos sujos e coisas parecidas, lixeiros do sangue crescendo sem sentimentos, nos escondendo através das veias abertas do sistema enquanto morrem milhares de nossos também encardidos vizinhos durante a madrugada. As anfetaminas estão me dominando, preciso delas à noite. Emergência. Há um corpo caído na rua. Deve ser verdade. É a quinta ligação em menos de uma hora. O plantão é meu. É madrugada, não tem hora melhor para morrer. Antes dos olhos abrirem e ver o vermelho do parto.

01:00:00, na vasta solidão de Mário Quintana, um terceiro personagem, até aqui uma incógnita, uma variável unida pela dialética trindade da lógica: amor e morte no dia do drama.

Dois disparos. Aconteceu alguma coisa, dificilmente alguém me liga. Escuto o telefone tocar. É meu irmão mais novo. Sua voz está sufocada. Eu te amo, mano. Você é tudo pra mim. Sua voz treme como o passar de mil vagões carregando todo nosso ferro para algum país distante. Me lembro dela como um coquetel molotov florido se espalhando pela espessura rugosa de um carro em meio à guerra civil. Eu sou um internacionalista, porra. Eu que sempre lutei para não ser mais um dado ou experiência desses filhas da puta. Eu que sempre despejei meu suor em prol da liberdade. Finalmente. Escuto uma gargalhada triste. Levanto a mão direita e passo pela cabeça. “O que está acontecendo?”, desço comigo as mais variadas imagens de filmes e novelas da sessão da tarde ou finalistas de festivais internacionais, a trilha sonora é fúnebre. Calma. Como se fosse possível. Como se estas palavras óbvias e clichês fossem resolver o problema a distância. É uma da manhã, não temos estrelas por aqui. Somente as luzes da cidade brilham lá embaixo. A ligação cai.

A roda gira. Um tambor, uma bala, e o sol desmanchando nos quadros superficiais a minha frente.

02:00:00 “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.” Segundo meu caro Camus.

O coração ainda bate. Duas da manhã. O coração. Bate. Ainda. Uma garrafa do lado esquerdo. Um caminhar apressado de saltos. O cabelo encharcado de um vermelho. Sangue. Bate. Os pontapés acertam o lado direito. O orgulho desferido. Mais uma golfada mancha todo o asfalto. O coração ainda bate. A ambulância chega fazendo estardalhaço, avisa toda a vizinhança, recolhida depois de ouvir horas de gritos sem parar. A polícia. Sem parar. Notícias três vezes ao dia. Agora, ouço a Itatiaia, prefiro imaginar a dor a vê-la explorada próxima da extinção pela saturação das imagens. Agonizando. O coração. A TV de um vizinho no último volume, não se ouve mais nada.



Cristiano Silva Rato nasceu em Japonvar, norte de Minas Gerais. Viveu a infância em Belo Horizonte (Vila N. Sa. de Fátima); a adolescência em Contagem (V. Pedreira Santa Rita), na Ruína II (V. Primavera), em Ibirité, e a juventude na Vila Formosa (BH). Atualmente vive no Morro do Papagaio, também na capital mineira. Em todos os lugares morreu e nasceu. No momento possui um blog (desatualizado). Tem um livro publicado (Sentido Suspenso, lançado em 2012, pela Editora Multifoco) e textos espalhados pela web e fanzines.
Ou
biografia

22. Artigo. Data. Os números apresentam passado e futuro. Nascido em barro e taipa, na tarde chuvosa de novembro. 1984. Japonvar. Brasília de Minas. Natural do mundo. Cristiano, graças as ondas de comunicação. Futura atividade profissional, e inquietação de vida. Certificou de circular por espaços diversos. V. Nossa Senhora de Fátima, BH; V. Pedreira Santa Rita, Contagem; V. Primavera – Ruína II (Ibirité); V. Formosa e Conj. Granja de Freitas, BH. Rato de Gaveta. Textos. Frases. Palavras corroídas. Tempo. Urbano. Acelerado por motores.

Fotografia que ilustra o texto: Tadeu Vilani

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