trilhei sem retorno, num susto, o único túnel
para chegar ao mundo: o teu. foste a indústria
da raça - mãe - a máxima artista da continuidade;
foste a cálida máquina geratriz e na fornalha do
teu útero um único número tornou-se um corpo
completo de homem: o meu. foste o ventre quente
e a fonte de leite dos quais cresci de ti, em mim,
simplesmente. foste a ávida nave-mater, a válvula
milagrosa, e dentro ainda, nas paredes internas da
tua barriga inflada, escrevi sem palavras, sem
grafia e sem fala, mas com sílabas invisíveis o
primeiro poema extremo para celebrar minha vinda
por tua vida e declarar minha dívida vital para
contigo, mãe. és a maior amiga, aquela contra a qual
nenhum segredo meu aguentaria, contra a qual não
poderia haver velame nebuloso ou qualquer engano
por que em você há o minério puro, a pérola da era
mais sincera e sei que posso confiar em ti, contar contigo...
mãe tão querida. foste a mestra certa e serena do meu
crescimento, a seta reta apontando a direção do caráter
e da felicidade e se, por horas tortas, pareci me desviar
ou esquecer tuas lições, engano teu, que apenas
experimentei, para crescer também, dançar às bordas
do sinistro limite de um abismo e voltei daquela trêmula
fronteira valorizando tanto a certeza da terra firme,
da tranquila ilha da família construída mais além da
linhagem co-sanguínea e o nome GUARNIERI é o que
predomina em mim acima de tudo e é com orgulho de
filho que o uso e me sinto seguindo a sonora energia da
linguagem, dessa linhagem da qual você é fonte tão próxima,
mãe. o que desejo a ti é que consiga, que decida, que reúna,
que conquiste paz e sobretudo saúde, que sábia já és e elétrica
e que essa eletricidade que é sua radiância impressionante
contagie inúmeros, afortunados por conhecê-la. te amo tanto
minha mãe. obrigado por tudo que me deste até aqui nessa vida,
nesse planeta. conte com este filho, seu amigo...
Estou sempre aqui, AFONSINA GUARNIERI... sempre contigo!
* * *
Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online AQUI (via ISSUU). Seu mais recente livro é Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014 [livro ganhador do 57o Jabuti]).