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Anchises | POESIA & FOTOGRAFIA por Helena Barbagelata

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Anchises


As águas do Lete enlutaram os teus pés, que terras
ensanchas hoje no teu passo triste, outras que as desertadas
alforjas anoitecidas, onde às vezes me procuras como procurara
a Aneas a sombra de seu pai, onde às vezes entras
sigiloso pela fenda quieta da memória, ou qualquer portão
ferruginoso que o descuido do sonho deixara para ti entreaberto;

As águas do Lete fizeram de teu corpo, húmida vestidura
de chuvas mansas, além no desbordo profundo do olvido,
de onde às vezes me falas, como falara a Aneas a sombra
de seu pai; onde às vezes insinuas, a larga música que se
queda emudecida entre palavras, histórias da tua
larga migração por entre mundos, dos homens que
saciaram com doçura o martírio incansável da lembrança;
escuto os seus suspiros por vezes, quando me acercas
nas tuas mãos ilusórias, o gemido murmulhado do rio,
sulcando planícies em banhos de sombras, a lenta
varredura dos dias;

As águas do Lete murcharam os teus lábios,
sangraram as sua tintura pelos canteiros pálidos das vias,
nasceram flores; sempre te afugentas, como se afugentava
de Aneas a sombra de seu pai, não permites que te tome
a mão esquiva, refazes o sendeiro do meu abandono,
a sós com a interminável sede que a vida tem para
a morte; de costas para a aurora, o rio volta a
chamar-te longe, o barqueiro já escudrinha o bote,
contando os passageiros, oiço os teus passos calados
e imperceptíveis esvaziando as alcovas da noite;
um fio de água deixas, como um afluente correndo
até ao pátio branco da infância; e sobre o meu rosto,
vermelha, uma flor.



fotografia por Helena Barbagelata
                                                                         






Helena Barbagelata

Nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1991 e vive em Atenas. É uma artista multidisciplinar, dedicada às artes plásticas, música e letras. Participa em revistas e antologias literárias em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laureada em diversos concursos internacionais. Foi a mais jovem vencedora do “Prémio Poesia e Ficção de Almada” (Edição de 2012), com a obra “O Mar de Todos os Deuses”, atribuído por unanimidade pela Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade de Língua Portuguesa e pela Câmara Municipal de Almada. Tem publicada a obra Soliloquia (Apenas-Livros, 2013).

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