Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

ABOIOS DA POESIA QUE CHOVE - João Matias resenha "Sete" de JIVM

$
0
0



            Acompanha a obra de José Inácio Vieira de Melo uma preocupação louvável. De modo que ao encontro da voz única deste poeta acompanham os galopes de uma poesia que satisfaz pela certeza daquilo que faz. Neste Sete (Editora 7Letras, 2015), livro que secunda muitos outros, destacando-se Pedra Só (2012) e a antologia O galope de Ulisses (2014), além de outros livros de poesia autorais e de antologias que o poeta organizou, José Inácio tece um resumo de seu universo liquefeito de imagens cunhadas como um geógrafo das geografias de dentro – para ficar na imagem colhida do poeta Sérgio de Castro Pinto e sua Coruja, do livro Zôo Imaginário (2005).
            Enganam-se aqueles que creem nas paisagens de José Inácio como simples regionalismos, vozes que ecoam do poeta baiano nascido alagoano. Mas é nos rios, veredas, montanhas e pedras desta rica geografia de dentro que se encontra o poeta pleno de seu próprio mundo. De tal modo, pode-se falar que José Inácio possui um “regionalismo de dentro”, uma poesia sensual que escrutina as veias abertas do sertão para dar-lhes sangue, corpo e os ossos do próprio poeta. Então, surgem virgens, cavalos alados, entidades e mitos da geografia deste prolífico escritor. A saber,

Sete cavalos tocando
sete pianos alazões,
desembestando acordes
nos meus porões,
acordando feras
e constelações.

Sete mestres do voo
clarividentes urubus,
ébano dos pianos,
mergulhadores do azul,
me levam ao cerne,
ao tutano de tudo.

            Sete, portanto, é um livro dividido em sete partes, trazendo sete poemas cada. Parte da mitologia ou de um esoterismo de José Inácio para conferir à seu universo constelações próprias. Sem um mundo estrelado, não existiria nem poetas, nem Bilacs insistiriam que, apesar da loucura, é preciso conversar com estrelas. Assim, um dia na fazenda Pedra Só (representada em outro livro de José Inácio), são constelações que surgem nesse resumo de dias passados no universo deste improvável nebuloso, vivido nas duras tarefas de viver do longínquo, interno sertão:

Eu acabei de comer
uma tarefa de cuscuz
com leite de vaca preta.

Que delícia de cuscuz,
com carne de boi nelore.
E agora uma rede azul,

pois sem nenhuma demora
vou semear a miragem
com Deus e Nossa Senhora.




            Não é raro, portanto, encontrar em José Inácio deidades ou figuras deificadas. Logo, virgens, cavalos alados e as curvas de rios viram deusas desta constelação sertaneja. Pode-se falar de um regionalismo sensual: afinal, quando se deduz que virgens lancinantes se entregam a poetas vemos metáforas de deusas que se entregam aos homens. Então, o que José Inácio quer buscar é o caminho dos mitos gregos para exemplificar uma descoberta do mítico sertão vivido e revivido nestas paisagens e constelações. A exemplo,

Simbad tatuando no ar
as letras da queda, meu anjo
navega sete mil léguas,
conhecedor das errâncias.

Meu anjo anuncia a virgem
ruiva, rubra, negra, azul
que traz plantada no ventre
Buda, Maomé, Jesus.

A virgem é a sétima irmã,
senhora dos realismos,
a apascentar gerações
entre cegas fantasias.
(...)

            Constelação de cores e de personagens, José Inácio Vieira de Melo brinca com o número sete, sua cronologia e seu simbolismo. O sete vira a razão das coisas existirem, quando sem ele uma certa matemática desta constelação perde o prumo das geografias internas. Voltando novamente à poesia de Sérgio de Castro Pinto, José Inácio é a coruja que, mais que tudo, é “atenta à geografia de dentro / és uma monja / um encorujado caramujo / monja em voto de silêncio”.
            Antes de ser árida, a poesia de José Inácio Vieira de Melo chove, como aponta o verso do poeta Bruno Gaudêncio. A alegria incontida de quem aceita conviver com as virgens, os cavalos e as tarefas diárias do poeta subjaz de como a sua linguagem é sofisticada, sertaneja, segura de para onde quer ir. Chovem monumentos e estrelas no “Estouro de espanta-boiada, / grande festa da Natureza / nos lajedos da madrugada”. E quando se pensa a noite já estrelada com ímpetos de silêncio e sono, “Vem cantando o quero-quero, / clamando alto pela aurora, / que logo aponta singela.”. Ao fim, quando deusas apascentam os galopes, “Tudo é movimento e cor, / pulsar louco de energias / numa algazarra de sons.”.
Ao final do livro, resta que este é um momento significativo na poesia de José Inácio Vieira de Melo. Atento a estas geografias, não há como pegar um poema na métrica popular do heptassílabo deste livro (outra simbologia importante) e não enxergar o movimento de um cavalo superior, seguro de si, galopando por vales verdejantes de um universo próprio, aboiando solenemente a mítica Pedra Só e os riachos encantados de um sertão por se descobrir.



João Matias de Oliveira Neto é escritor, editor, roteirista e sociólogo de formação. Edita a Revista Blecaute de Literatura e Artes e é responsável pela edição de contos para a Revista Sexus de Literatura. Autor dos livros de contos Aos Olhos de Outro (Agenda, 2007) e O Vermelho das Hóstias Brancas (Bagaço, 2009), também teve contos premiados nos prêmios Unifor, Fran Martins e Via Literatum. Como roteirista, dedica-se à escrita e revisão de roteiros para a produtora Vermelho Profundo, tendo em 2010 produzido e dirigido de forma independente o documentário A Cor e o Cheiro da Feira. Tem textos literários e resenhas críticas publicadas no Correio das Artes (João Pessoa- PB) e jornal Contraponto. Atualmente, cursa Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, pesquisando as ligações transatlânticas entre obras literárias de João Ubaldo Ribeiro e Pepetela.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles