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O ser humano na era de sua reprodutibilidade tática (Breve nota)

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por  Marco Aqueiva
O ser humano é um signo em todos os sentidos. Os sentidos se afirmam e negam em perpétua conjunção que não resolve o conflito. Nem jamais resolverá. Não existe um centro fixo. Talvez por isso roubar e fazer amor ganhe o preciso e perturbador contorno de uma transgressão que se quer real e absolutamente soberana: “Roubar um banco requer / um local aconchegante, / que estimule os cinco sentidos”. Os meios se transformaram em fins. Talvez nem seja só por isso que fatalmente sejamos constituídos de uma maldição ancestral: somos o resultado de uma arbitrariedade que nos impõe a condição de objetos: “Não fomos consultados / se queríamos nascer, / nasceram-nos à força”. Talvez. A felicidade dos infelizes brazucas como um pisca-pisca sem passado na sociedade do espelho. Consciência própria e alheia: “que o original jamais atingirá”. “Autenticidade pra quê?” [...] quando tanto faz a distinção entre original e cópia: “Na era de sua reprodutibilidade tácita / arrebatará o Nobel o primeiro porra-louca / que conseguir clonar a aura / do mais infeliz dos brasileiros / da mais infeliz das brasileiras.”
Para muitos, o maior fascínio da Poesia resulta da combinação de ritmo, imagem e transgressão. Em O ser humano na era de sua reprodutibilidade tática, Valério Oliveira elabora uma poesia de alta voragem, combinando imagens e ritmos poéticos e narrativos, ironia e ciclotimia transgredindo esse sonho ou mentira que somos e vivemos. Arriscaria dizer que politizados, os Poemas, esses mesmos, nos olham em pungente e tática agressão!

A seguir, cinco poemas extraídos da página da Editora Patuá.


Roubar um banco e fazer amor

Roubar um banco requer doses iguais
de contração e descontração, razão e tesão.
Uma jacuzzi e um filme erótico
          também são bem-vindos.
Roubar um banco requer
          um local aconchegante,
          que estimule os cincos sentidos.
A temperatura deve ser agradável,
          roupa demais atrapalha.
Todos os orifícios merecem
          ser saboreados sem pressa.
Fazer amor paga muito bem,
          se o líder for sagaz e a quadrilha,
          discreta.
Armas não são indispensáveis,
          força física e sangue frio são.
É preciso cavar um longo túnel,
          trabalho sujo que leva semanas.
Como esconder dos vizinhos?
O que fazer com o entulho?
A parte mais difícil de fazer amor
          é escapar e esconder o dinheiro.

***

SAC
Arbitrariedade ancestral
Não fomos consultados
se queríamos nascer,
nasceram-nos à força
Não seremos consultados
se vamos querer morrer,
morrer-nos-ão à força
Milênio após
milênio a natureza nos faz
reféns de um medonho serviço
de atendimento ao consumidor

***

O ser humano na era de sua reprodutibilidade tática

O mais infeliz dos brasileiros não tem cópias.
A mais infeliz das brasileiras também não tem cópias.
           São autênticos, se amam,
uma aura de fogo-fátuo abençoa sua união.
De que maneira ser feliz num país de reproduções?

1. Seja o original de muitas cópias
           melhores que você.

2. Ou seja uma das muitas cópias melhoradas
           de um original pior que você.

Não somos únicos, mas a felicidade do reflexo
           não é o primeiro postulado
da sociedade do espelho?
           Autenticidade pra quê?!
As cópias aperfeiçoam o original e sua biografia.
A reprodução tática eleva os clones a patamares
           que o original jamais atingirá.
Que felicidade, encontrar no metrô,
           no escritório, no restaurante,
no cinema, no parque, no supermercado, no bar
           meus muitos eus
melhores que eu.
A aura? Ora, a aura... A autenticidade...
Ainda não dá pra comprar, entende?
           Não dá, amigo!
Na era de sua reprodutibilidade tácita,
           arrebatará o Nobel o primeiro porra-louca
que conseguir clonar a aura
           do mais infeliz dos brasileiros,
           da mais infeliz das brasileiras.

***

Querido Napoleão,


Palavra estrangeira
no texto brasileiro
precisa mesmo ser escoltada
por aspas?

Ou italizada?

Por que tamanha precaução
policial?

Nos aeroportos do país
o turista estrangeiro
por acaso desembarca escoltado
por aspas?

Ou italizado?

***

Eu e os outros

Um sósia é um alter ego?
Um alter ego é um heterônimo?
Um heterônimo é uma persona?
Uma persona é um duplo?
Um duplo é uma máscara?
Uma máscara é um clone?
Um clone é um sósia?
Qual a diferença? Sempre me perguntam,
querem uma boa resposta
mesmo sabendo que uma boa resposta
raramente fala a verdade.
Entre mim e eles, entre nós e os outros,
desconfio que a diferença não está no rosto,
na cor da íris ou no tom da voz.
Está nas entranhas, no fundo
mais profundo do furacão abissal
antigamente chamado de alma.
Está nas crenças, nos desejos,
na diferença entre dilúvio & covardia,
coragem & terremoto.
Um sósia é um alter ego?
Um alter ego é um heterônimo?
Um heterônimo é uma persona?
Uma persona é um duplo?
Um duplo é uma máscara?
Uma máscara é um clone?
Um clone é um sósia?
Qual a diferença? Sempre me perguntam,
mas tentar responder já é mentir
e mentir não é sufocar
todo o brilho do mistério?





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