Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

CONTO DE SUELI CAVENDISH

$
0
0




O PROCESSO


Acontecia-lhe querer contar uma história que não se deixava contar. Isso não era desde ontem, ou desde o mês passado, mas desde o outro ano, ainda, o anterior. Afirmo-o sem hesitar porque sempre que tentava dizer sobrevinha o fracasso. Uma proliferação enlouquecedora de detalhes envolvia a narrativa em novelos. Por exemplo: Para poder explicar isso, precisava antes explicar aquilo, ou ao menos fazer menção a outros fatos que se desdobravam, quer na direção do passado, quer na direção do futuro, como um oceano de infinitas possibilidades avançando nas duas direções. A história que queria contar se tornava viscosa, como uma anêmona, embora não soubesse bem se uma anêmona era de fato viscosa; ou uma medusa, enfim, o importante é que não se podia segurá-las com as mãos. Eram fugidias, escorregadias, as palavras, e as histórias que com elas dizia; seu corpo desdobrava-se em infinitos folhetos e elas se expandiam, quando avançavam na direção do futuro, das infinitas possibilidades contidas em cada desdobrar do pequenino núcleo, ou se recolhiam, até praticamente se fecharem em si mesmas, caso se tratasse de reminiscências e detalhes que o passado chamara e recolhera ao seu núcleo primeiro. Eram móveis, isso é algo que se poderia afirmar sobre elas, as histórias eram móveis e o seu contorno indefinido. Enfim, era com isso que vinha lutando, com esse obstáculo que não se dava a ver. Era, porém, imperativo que contasse essa história. Contada, concatenada, a verdade reluziria, autoevidente.
Devia ser por inépcia sua que houvesse, sempre, também, uma enorme quantidade de fios soltos, que não se deixavam prender num feixe de sentidos. Fios que se destacavam e seguiam os destinos mais inusitados. E o resultado da sua empresa narrativa era sempre o fracasso. Entretanto, repito, era absolutamente imperativo que a contasse. Contada, concatenada, a verdade reluziria, autoevidente. Pois como poderia viver sem que algo em sua semi-inteireza ao menos pudesse tanto ser contado, quanto ser ouvido, ou quem sabe lido, e no limite, acreditado. Era a história de sua vida, esse tentar contar e não conseguir. A angústia resultava sempre da sofreguidão com que tentava amarrar tantas pontas soltas de uma mesma história. E a sofreguidão resultava da antecipação do fracasso. Então precisava contar. De uma vez por todas e definitivamente. 
O olho agora lacrimejava, ferido por um raio de sol certeiro como um dardo. Porra, só naquela porra de cidade imunda podia haver um sol tão filho da puta. Fraquejava. Às vezes conseguia que uma pequena parte da história dissesse algo, explicasse. Não para além de qualquer dúvida. Mas para além de qualquer dúvida razoável, pelo menos. Isso, entretanto, não durava muito tempo. As pessoas ficavam em silêncio, meneavam discretamente a cabeça em descrença. É que um fio da narrativa tinha acabado de se soltar e descrevia aquele traçado em arabesco, que ao dobrar-se sobre si mesmo produzia a mais torturante dúvida, o desenlace mais estéril, irrelevante e improvável. Para enfrentar esse sumidouro por onde as certezas cuidadosamente arroladas escoavam era preciso evocar uns tantos outros fatos, ainda, testemunhos, evidências, explicações, argumentos. Principalmente agora que o processo havia sumido.
Exato. A pasta com os documentos do processo tinha sumido do arquivo, embora o arquivo continuasse no quarto, no mesmo lugar de sempre. Como a lembrar-lhe do pouco caso que fizera das provas sob sua guarda. É o que acontece quando alguém trata com indolência algo que deveria estar muito bem guardado. Certamente alguém observara esse descaso. A indolência fora punida. Alguma coisa, neste mundo, com deus ou sem deus, escapa da punição?
 Ficou na calçada, arquejando, esperando a dor passar. O advogado que viera procurar estava morto, é o que tinham acabado de lhe dizer. Viera procurá-lo quando viu que da sua casa tinham sumido todos os papéis do processo. Como já tinha dito. Processo que vinha sendo guardado por muitos anos dentro do arquivo. Esperando o dia em que viria para o centro do palco. Pensando bem, só neste último ano mesmo é que não se dera ao incômodo de remexer na pasta. Não havia motivo para que o fizesse. Colecionara-os um a um, pusera-os no arquivo, dali nunca saía nada. Esperava o dia em que, aberto o processo, cessariam as dúvidas. Tudo ocuparia o seu lugar de direito. A sua história poderia ser contada do começo ao fim. Mas agora que ficara sabendo da morte do advogado – morte inexplicável, como podia ter acontecido morrer-lhe o advogado, que tinha um enorme bigode preto e de modo algum lhe parecera que iria morrer tão cedo. Por certo a parte em litígio não se atreveria a tanto.
Logo em seguida, porém, deu-se conta de que a morte do advogado era perfeitamente plausível. Compreendeu que haviam se passado muitos anos, que o advogado não se comprometera a viver para sempre, mas apenas a juntar uns documentos, formar um processo e levá-lo à corte. E era justamente esse processo que havia sumido de dentro do pequeno arquivo que guardava no quarto, uma pasta inteira de papéis, cuidadosamente colecionados durante os anos em que sofrera, da parte em litígio, todos os danos. Inexplicável. Nem um fragmento, um naco de carta, de aviso, de intimação, o que quer que provasse que o processo existira. Mas não se desesperava ainda; mesmo ali, naquela calçada suja, sem saber o que fazer, sem ter mais aonde ir. A consciência de tê-los possuído durante todos esses anos – quantos anos? Muitos -  em que muita coisa acontecera – era tão forte que ainda podia vê-los como presença nítida, corporificados em matéria. Folheava-os com a imaginação e a cada vez a sua pós-imagem os trazia de volta, como presença, sólidos, intactos, discerníveis. Isso de dar existência material à sua ausência começara desde quando, ainda em casa, soube que o perdera. Não saberia dizer quantas foram as vezes em que procurou por esses papéis, em casa ainda, e tornou a procurá-los até sobrevir o esgotamento.
O que primeiro pensou é que não era caso para desespero. Foi o que primeiro pensou. Certamente o cartório teria o processo inteiro, porque o que tinha guardado eram cópias. Certamente o cartório teria o processo inteiro, com todos os originais. Foi por isso ao cartório, primeiro. E como lá não tivessem encontrado processo algum – foi o que disseram – é que foi procurar o advogado. No cartório, serviço público, destinado a manter e guardar tudo o que dizia respeito aos direitos dos cidadãos, não havia sombra de processo, não havia um fragmento qualquer, onde se pudesse ler que tinha havido um processo, nenhum papel, nada, enfim. Havia sem dúvida acreditado mais do que devia na justiça e na lei. Havia subestimado de maneira infantil a parte litigante.
Mas lá não encontraram processo algum. Foi o que disseram. Nem processo, nem certidões. Pelo menos não a certidão original, na qual tinham sido feitas as anotações. Não havia nada no cartório. Serviço público, feito para manter e guardar o que não pode nem deve desaparecer. Sequer um fragmento, onde se pudesse ler que tinha havido um processo, um papel, um documento datado, onde estivessem grafados nome de cartório, número de intimação, o que fosse. Bem no centro daquela cidade de calçadas imundas. Nenhum pedaço de papel, por pequeno que fosse, nenhum fragmento. E o advogado? Morto. Era o que acabara de ouvir naquele prédio mesmo de onde saíra há pouco, cujos corredores percorrera em busca da sala que ele ocupara, passando por portas que levavam a salas nas quais estantes de metal precárias, sob o peso das montanhas de pastas, disputavam espaço, em que os papéis pareciam gritar desarvorados, qual prisioneiros de galés, por um meio de escape. O esgoto bem junto do degrau de calçada por onde alcançava a rua e que evolava o odor mais putrefato, parecia-lhe agora o melhor destino para toda essa droga de processo, se em algum momento viesse a tê-lo em mãos. E como se não bastasse tudo isso um raio de sol que passava pela fresta entre dois edifícios lhe ferira o olho, que ficara a lacrimejar, enquanto o outro olho seguia, inadvertidamente, o trajeto de uma barata, que corria apressada pelos cantos da calçada, calçada imunda de uma cidade devastada.  Tanta folha de papel havia visto, quase implorando que os resgatasse. Mas nenhuma era o fragmento que buscava. Arfava agora, sob o sol inclemente, ali na calçada. Arfava sob o sol da canícula, diria, se morasse no hemisfério norte. Mas aqui havia apenas este sol tão forte que um dia um poeta chamara de sol de dois canos, estabelecendo assim uma relação de parentesco definitivo entre o sol e uma espingarda. E uma sujeira que se multiplicava e amontoava em cada esquina, que em toda parte formava monturos. Um dia tanto lixo teria que ser mandado para o espaço sideral, não havia outra solução para esta cidade que um dia fora tão bela.
Voltava ao ponto de partida. De pé, sob o sol, sem qualquer prova de que tinha havido um processo. Nenhum pedaço de papel inteiro ou rasgado onde se lesse uma convocação, onde se visse um carimbo, um número, assinatura. Dava agora um passo adiante, e o pensamento mais à frente dos seus passos, retornando no tempo em velocidade vertiginosa, até os anos em que morara naquele apartamento com a pequena família.
Enquanto pensava nas inúmeras serviçais que lá haviam trabalhado, com uma guinada de corpo retornava ao cartório. Não tinha ideia do que faria lá, uma vez que lá as alternativas haviam se esgotado. Passou ao seu lado na calçada um soldado com cara de cachorro. Pobre homem. Alguma diarista poderia ter entrado a serviço da parte litigante? Poderia ter removido o arquivo inteiro, dando vez a que tudo tivesse sido remexido, ou a pasta inteira ter sido retirada, enquanto outras pastas teriam sido cuidadosamente escrutinadas para não deixar resquícios do que ali se guardara? Não, não tinha sido assim que sucedera. Duvidava que tivesse sido assim.
Sob um impulso que agora lhe vinha de dentro subiu a calçada para entrar no cartório.  Agora quase abalroara o homem com cara de cachorro, que voltava. Quando o funcionário se ergueu por traz do balcão, soube. Soube-o exatamente nesse momento. O conhecimento daquilo veio como um sopro. Definitivo, decisivo, terminante. As if nature itself had taken charge she heardit whisper o conhecimento daquilo viera galgando o caminho escarpado e escuro até que, no alto, abriu-se em flor robusta. Pronto, contou-se, a história, de modo completamente imprevisto. Não saberia dizer o que precipitara tal evento, mas era em tudo um evento extraordinário. Algo que a si mesmo se guardara durante 15 anos vinha à superfície. Talvez os deslocamentos sucessivos entre cartório e o prédio onde ficavam os escritórios de advocacia. Os deslocamentos causam efeitos extraordinários no espírito. Mas, não, convinha manter excessos sob controle.  Agora, extática, pensava com a lentidão de quem vê o mundo pela primeira vez. O funcionário, também inerte, apenas examinava o seu semblante vazio. Cessaram todas as dúvidas, a história por fim se contara, completamente muda. Lembrou-se dos passos furtivos dele ao chegar em visita, lembrou de gestos largos, risadas constrangidas. Soubera-o sempre, mas precisara de mais ou menos quinze anos para que este momento enfim . . . essa revelação do que sempre fora claro e reluzente pusesse fim aos fios soltos, às palavras perdidas.  A verdade é uma forma inteiriça, hirta, tesa, que jamais se deixa contar. Era agora uma pérola negra, perfeitamente encerrada em seu túmulo de ostra. Era sua, toda sua, somente sua para sempre, insígnia do amor maior.



Sueli Cavendish
é ensaísta e tradutora, professora associada do Departamento de Letras da UFPE. Criou a revista Eutomia (2008), que edita desde então. Organizou o livro "Teoria e Prática da Tradução Literária" (2015), pela editora da UFPE, e participou com dois artigos da coletânea "Repensando a Teoria Literária Contemporânea”: no primeiro deles, examina as raízes românticas da literatura moderna; no segundo, escreve sobre Jonathan Culler e a desconstrução.






Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles