“Prezada Regiane,
Obrigado pelo seu interesse em se juntar ao nosso bem sucedido grupo. Hoje atendemos a mais de três milhões e meio de usuários em todo o Brasil. Nosso UPS é o atendimento vinte e quatro horas por dia, sem restrições. Nosso objetivo é estar presente em primeiro lugar sempre que um cliente precisar dos nossos serviços. Como cobrimos todo o Brasil, é necessário que nossos atendentes transitem bem pelos sotaques e expressões regionais sem grandes dificuldades. Para fazer parte da nossa empresa você precisa ter um computador com excelente conexão de internet, estar disponível durante o período de trabalho, seguir à risca os termos e condições do contrato, especialmente ao que se refere à privacidade dos nossos clientes. Oferecemos salário compatível, bônus por performance, flexibilidade de horários e a facilidade de trabalhar no conforto da sua própria casa.
Para processarmos seu cadastro, por favor, faça o teste em anexo e retorne em, no máximo, vinte e quatro horas.
Atenciosamente,
Matias Pontes
Red Hot Salt and Pepper Ltda”
“Você viu, Guilherme, não tem nada demais no e-mail. O que eu tenho que fazer não compromete em nada minhas tarefas aqui dentro de casa. Quando o Luciano estiver dormindo, eu ligo o computador e mando brasa. Também não preciso dizer quem sou, de onde, nada disso. Tudo é mantido em sigilo.”
Regiane tentava achar um trabalho desde que o filho nasceu. Não aguentava mais ver a barriga crescer sem criança dentro, entediada consumindo pacotes e pacotes de biscoito recheado.
Do outro lado do pensamento, Guilherme. O marido há seis anos. Companhia há quinze. Fizeram um filho, o Luciano. Fizeram porque era a hora. Não se interessavam em fazer gente alguma, mas se não fizessem naquele momento, Regiane ficaria velha e ia perder a vez. Antes do Luciano, Regiane trabalhava na boutique da cidade. Decorava a vitrine, viajava pra Belo Horizonte e São Paulo pra comprar estoque.
Em Beagá ficava na casa de uma tia, perto da Pampulha. Em São Paulo, a dona da boutique pagava um hotel fuleiro ao lado da vinte e cinco de março. Regiane nunca traiu o Guilherme. Só uma vez mesmo. Lá em São Paulo numa dessas viagens. Conheceu um rapaz no ônibus e enquanto dormiam, encostaram os braços e pernas um no outro. Quando acordaram, não se mexeram pra não estragar aquele desejo todo que, não era possível, só ela sentisse!
Desceram no Terminal Tietê. Ele tinha ido fazer um treinamento pra empresa de consultoria de gestão. Palavras enormes que não significavam muito coisa. Daí surgiu um convite pra tomar um suco perto de onde ele ia ficar, num hotelzinho na Barra Funda. Pegaram um táxi que ele pagou e ninguém nunca tocou no assunto do suco. Foram direto pro quarto. Ele colocou um filme pornô e Regiane nunca se divertiu tanto na vida.
Catou as roupas e seguiu pra Vinte e Cinco de Março sem nunca mais ver o Selmo. (Soube do nome dele quando se despediam na porta do quarto.)
Na viagem de ônibus de volta pro interior, Regiane foi tomada por uma culpa tão grande que, chegando em casa, quis fazer um filho com Guilherme. Era a maior prova de amor da qual era capaz. Para Guilherme um filho cairia bem. Faria com que aparentasse decência na missa, na pracinha, no clube de esportes. Calaria um pouco o boato entre ele e Janete.
Poucos meses depois, Regiane pediu demissão na boutique e foi cuidar da casa, esperar a criança nascer, melhorar seus dotes culinários.
Ninguém nunca mais viu a Regiane. Nem na boutique, nem pelas ruas, nem no clube de esportes onde costumava jogar vôlei dia sim, dia não.
Nem na frente do espelho Regiane era mais vista. Com a gravidez, mudou bastante. E como diziam os outros, era preciso ser mãe antes que o sino tocasse, Regiane acabou tornando-se uma estranha, irreconhecível na sua pele cada vez mais esticada, dando lugar ao tédio que entrava sem parar em forma de comida. Luciano nasceu e já vai seguindo pro seu segundo ano de vida. Regiane passou a comer biscoitos e caixas de bombom dentro do banheiro, antes de tomar banho, escondida dela e do marido. Quando se fartava de chocolate, se via no espelho prometendo melhorar a partir de uma das infinitas segunda-feiras que se seguiram.
Regiane aumentava seu peso e culpava a gravidez. Demoraria a acabar com aquele peso, aquela consequência toda! Era normal, repetia sem parar. Ela sentia repulsa dos braços roliços, das pernas que davam assaduras no roçar da carne em dia de verão.
Enquanto a vida seguia, não findava o boato de Guilherme e Janete. Mas Regiane não acreditava. O marido nunca faltava. Iam à missa, à pracinha, ao clube de esportes, passeavam pela cidade e ele nunca deixou de dormir em casa. Não tinha tempo nem lugar pra Janete.
Regiane passou a não deixar que Guilherme a tocasse. Não queria que a visse assim, tão diferente daquela que ele um dia conheceu e pela qual se apaixonou. Não se encontravam há muito tempo, nem na mesa do jantar, nem na hora da novela, nem na cama. Foram sumindo paulatinamente. Com força, em definitivo.
Regiane olhou o computador. Abriu o anexo do e-mail. Era a hora de encarar o teste para conseguir o emprego em hora flexível. Uns trocados e aquilo daria a ela a motivação necessária para mudar o que precisasse. A vida não ia bem. Disso ela sabia.
No alto do anexo a explicação:
Sinta-se à vontade. Não limite pensamentos e palavras. Quanto mais solta e suja, melhor.
E a primeira pergunta:
Teste 1. A partir da frase abaixo, inicie o processo.
“Você tem peitos lindos. Posso tocá-los?”
Regiane pensou nas palavras mais sujas que conhecia.
Escreveu lamber, chupar. Logo apagou. Sentiu vergonha.
Tentou escrever novamente. Preencheu todo o formulário e enviou.
No dia seguinte a resposta.
“Obrigado pelo seu interesse. Infelizmente não achamos suas respostas apropriadas para o nosso perfil de clientela. Não foram estimulantes o suficiente. Atenciosamente, Matias Pontes. Red Hot Salt and Pepper Ltda.”
Se tivesse nutrido a lembrança do Selmo, se lembraria das falas do filme pornô e aquilo seria, sem dúvida, suficiente pra conseguir o emprego.
Mas o Guilherme, homem de respeito, nunca deixou que Regiane entrasse no quartinho dos fundos enquanto fazia coisa de homem. Pelo menos não estava com a Janete, tinha certeza.
Imagem: pintura de Pietro Antonio Rotari (Italiano, 1707-1762). Óleo sobre tela. Norton Simon Art Foundation.
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Nara Vidalé mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é Mestre em Artes pela London Met University. Mora na Europa há 14 anos. É autora de infantis, juvenis e seu primeiro adulto, “Lugar Comum”, já em reimpressão, foi lançado em abril deste ano. Nara já participou como autora palestrante em diversas feiras literárias como a Flipoços, Clim, FNLIJ e Cheltenham Festival. Premiada com o Maximiano Campos e com o Brazialian Press Awards, Nara tem textos publicados em revistas como Germina, Homoliteratus, Confeitaria e a própria Mallarmargens. Escreve sobre dança e artes para publicações inglesas. "Regiane" faz parte do seu próximo livro de contos.