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"DID I EVER LEAVE YOU?""YOU LET ME GO"

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“Did I ever leave you?”
“You let me go”[1]


Luciana Salum


Como o tempo ficou em seu corpo ela não sabia mas sentia a contagem das horas em evidência numa ruga insistente em dividir-lhe os olhos.

Visto que nem tudo começa exclusivamente mal, o mesmo tempo garantiu um afinamento a marcar seus ossos faciais. Antes praticamente inexistentes, tal ausência de ossos permitia a impressão de que seu rosto era unicamente redondo.

Violada pelo tempo, estreitou.
Estreitos também passaram a ser os laços ao não mais policiarem o tom de sua voz depois da primeira garrafa de vinho e deslizarem em eufóricos contágios a descobrir as delicadezas miúdas do cotidiano... Sem que precisasse ser, constantemente, longe.
Cultivava o hábito de ser longe.


                                                                FOTOGRAFIA: GABRIEL DIAS
                                                                               ENSAIO: FRAGMENTOS IRRECUPERÁVEIS
                           



Sempre fui apaixonado por ela. Desde a época em que buscava encontrar qualquer traço a gradaciá-la no espelho, visto que era feia. Mal sabia que intermitentemente a observava como uma espécie de olhar indiscreto a roubar qualquer ângulo ainda não desbravado de seu corpo.

Finalmente ao desperdiçar beleza, nascia seu incômodo pela recusa da linha atrevida que invadia seu território e crescia a cada nova vivência.
Exatamente entre os olhos. Seus. Olhos.
Base, protetor solar, base, pó, protetor solar, base...
Se a vida ainda fosse aquela fotografia insistente em retratar todos os instantes daria para ela se proteger com as novas ferramentas tecnológicas.
(...)
Que audácia essa do tempo em se fazer presente justamente quando a leveza a fez perder o relógio.


Foi-se mais um ano no momento em que esqueceu se era ou não cinco-para-o-meio-dia. Confundiu-se nas horas embora ainda não venerasse o tempo. Ao contrário, sentia que ele desgastava a vida, a sua, arbitrariamente e de maneira desigual, a depender do ano.
O último levou, junto com sua esfera facial, aquele instante sutil dos enamorados em que do amor se passa ao desamor sem que eles percebam.
O último levou-lhe parte do corpo.
Ela emagreceu.

E, enfim, ficou mais leve.


    

Mantive-me longe.
Creio ter aprendido cedo demais com ela... Julguei-a impossível ao toque. Quisera eu ter tido um amor mais ameno que me permitisse desrespeitar a imagem construída  pela fresta da minha janela.

O tempo desdenhou de nós.
Ela cresceu.
Eu não.
Acho que issoé envelhecer.




[1]Beckett, Samuel. Waiting for Godot. 1952.

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