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3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT






noite


o relógio digital do aparelho de tv a cabo mostra 3:47 quando
eu acordo, sobressaltado, do sonho que é quase um pesadelo
e do qual logo me esqueço.
tento voltar a dormir                          não consigo. para relaxar

eu penso: em estradas verdes e onduladas no norte de Minas ou na que vai de Barra Mansa a Bananal.
eu penso: na imensidão azul-cinza-verde do mar, e me vejo olhando para o horizonte até onde a vista alcança, lá longe onde céu e oceano se confundem. mas

não adianta: o que me vêm à mente são problemas, ansiedades e contas a pagar.

3:49. desisto e me levanto. faço xixi, bebo água, desço até a sala. pela janela
olho a rua e lá fora nada se mexe, nada, o que há é a madrugada calma.
e aqui dentro, enquanto a roda da noite vai girando devagar,

e aqui dentro, enquanto isso, aqui
bem dentro,

segue o tormento.




poema do outro lado do mundo

noite. e chuva. e o asfalto molhado das
ruas brilha, refletindo as luzes cantonesas: dos postes, dos semáforos,
dos faróis e dos pisca-piscas dos carros, das motos,
dos anúncios e das vitrines. dos neons multicoloridos. conto uma, duas, três,
muitas poças d’água. os pneus fazem shhhh shhhh quando passam,
rápidos, pelas ruas. olhos puxados. hong kong.
muito longe de casa: eu. a solidão, a umidade, a noite. e
que vontade, mas ai que vontade, de estar agora, na cama,
com você.




 jararacas no jardim

muitas pessoas querem ter, em casa, um jardim
tropical. um jardim selvagem e rústico. com
bananeiras, árvores da mata atlântica e
vegetação rebelde. mas ninguém
quer encontrar, no meio das plantas,
uma toca de jararacas. ou, entre as
bananas ainda no pé, um ninho de aranhas armadeiras. é
um paradoxo, isso. e é verdade. eu
não mentiria a respeito disso,
você sabe. jararacas no jardim ninguém quer. você
sabe que vivemos em meio a
paradoxos. e também em meio a frangos assados, lasanhas,
latinhas de cerveja, aparelhos de televisão,
roupas e jardins nem um pouco selvagens. jardins, eu diria,
com muito azulejo e pouco vaso. porque, você sabe, se
pensar bem, vai concluir, e nem precisa
pensar tanto assim, o nosso universo é
um pouco surrealista. eu ouço pessoas dizendo que
gostariam de ter um jardim selvagem. morte aos azulejos!, elas
bradam. mas jararacas no jardim ninguém quer. e,
aos domingos, pegamos filas para entrar no cinema, para assistir
a filmes que nem mesmo nos interessam. e
nos damos as mãos. fazemos isso com afeto. é
um universo um pouco surrealista, esse, em que
vivemos. você sabe que estou falando a verdade, que
eu não mentiria.






*    *    *





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, o livro de poemas Outubro/Dezembro e, pela editora Descaminhos, os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e, agora em novembro, Só uma estranha luz como pensamento. 


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