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Tratado das veias II - Rita Santana

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Ilustração: Gustavo Martins




BÊNÇÃO


Apeio o peito sobre a saudade que arde a carne,
Sem consolo possível no solo das desesperanças.
Herdei de meu pai pujanças, bravezas,
E de minha mãe a fragilidade animal das fêmeas.
Por isso tenho tudo!
Posso despregar o afeto como macho cansado faz,
Posso abandonar as armas, trêmula, porque morro.
Tenho grandes, pequenos e verdes medos,
Sou mulher de agora, de hoje,
Tenho hábitos de galo e caprichos de galinha.
Falta o dicionário farto em suas doações doces de fonemas,
De raízes, arcaicas presenças de verbo.
Doarei o dia à paz, ao abandono das preocupações.
Tratarei da poesia, minha parceira de demolições e alvenarias.
Quem me dera só ser, sem bruscas mutações,
Mas o corpo oscila na regularidade do ciclo.
Endoideço alguns dias porque virá a sangria
E entrarei no templo das penitências,
Fitando meu Deus com acusações humanas.
Sou esse fruto peco das diásporas,
Minha veemência é minha mordaça,
Assim têm sido meus dias de santa, casta, pacata,
Senhora de um Deus-homem.
Desacato porque sorvo substantivos, substâncias,
Essências de nomes, dores, fantasias.
Desacato porque sou poeta.
Tenho língua de fontelas, hildas.
Sou muito brava para donos
E afeita a clamores de desprotegidos.
Tenho tudo sob meu viaduto-castelo.
Sou rata e rainha.



BRECHÓ


Porta aberta, vem.
Escolhe um traje que te sirva.
Trago no meu brechó armaduras, elmos, asas,
Sobretudo sobretudos de linho fino, duro, durável,
Perfeitos para proteger-te do frio da minha ausência.
Enquanto eu, nua, sei-te eunuco,
Maluco pela trepidez das minhas pernas finas.

Caibo na tua fantasia?
Visto-me todas as manhãs de cortesã,
Faço-te a corte, corto os punhos de renda,
Oferto-me lânguida na tua rampa de marfim,
Banho-me de leite de cabra,
Capricho em lambidas nos lábios.

Ainda assim, projeta-me inteira para fora dos teus planos.
Rasgo panos, cortinas roxas de saudade, lençóis,
Rasgo toalhas de mesa, fronhas babadas,
Monogramas bordados,
Tudo, tudo!
Rasgo-me em palavras, xingamentos, palavrórios, orações,
Abuso do vocabulário:
- Picaresco, masmarro, suserano, vilico, perdulário,
Flume, juremeiro, espurco, vulgívago,
Abusador da minha vulva, da minha pelve,
Da minha pele apurada de mulata doida, negra política,
De mulher mal-amada sem teus píncaros!

Vem! Veste o traje de homem amado,
Cala no meu colo,
Ouve meu pulso, minha taquicardia tardia,
Minha alegria groselha.                                                          
Fala com meu silêncio e espia.
Aconselho-te amar-me até sempre. Amém!




BRINCADEIRA DE RODA


Dediquei o dia aos versos.
Esqueci de pedir bênção a minha madrinha,
Por isso, tão cheia de fracassos
E cortada de mistérios.
O meu falar sério esconde mortes antigas,
Presságios.
Comi pedra, engoli sapos
E furtei, sem querer, cosméticos baratos.
Organizei movimentos heréticos
Com os meus gritos de gozo.
Em esforço brutal, saí com moços vazios
Só para ensinar-lhes silêncios e deixares.
Em troca, aprendi coisas de mulher
Que só homem ensina (sem saber).
Mas ninguém viu!
Ofertei-me à existência sem nada lhe pedir,
Só reconhecimento eterno.
Claro! Por ser assim tão cheia de graça, acanhada de vícios,
Assanhada por saias estampadas e perfumes masculinos.

Dou-te um dia para achares o meu nome inscrito
Entre túmulos de socialistas velhinhos
Nada há de mais doce no mundo
Que velhos socialistas velhinhos.

Dou-te um dia do meu destino,
Se achares meus versos colhidos ontem,
Por mãos de poetas anônimos.
Nada é mais fino
Que um poetinha anônimo.

Dou-te minha vida toda,
Se o anel de vidro não se quebra,
Se o amor que tens não se acaba,
Se o bosque solidão se alegra,
Se não me deres o ofício de professora.

Dou-te minha vida toda,
Se da areia, não vou para o sertão,
Se a sereia escuta o meu caso,
Se o aperto de mão ensina namoro.

Dou-te vida toda
Se a ciranda for rodada a meu favor,
Se a roda guardar o anel na minha mão,
Se a rosa não brigar nunca com o cravo,
E se, em Dona Miné, eu ganhar um beijinho e um abraço,
Então, dou-te tudo.


  

CONCUPISCÊNCIAS


São esses riscos lilases nos olhos,
Vontade de invadir o ímã para aprender atrações,
Encontrar pistas.
Adiante, o paraíso de mendicidades furtivas
Para um outro alheio,
Aliado da indiferença, do rouco, do comportamento perfeito.
Concupiscente, o meu olhar pede:
- Se apiede deste corpo que definha!
Linha apontada para o desespero das pequenas ânsias.
Quero casca de ovo torrado num pires branco,
Bordado de rendas azuis.
Uivos, unhadas, pedradas no telhado da casa...
De tudo tenho feito pra dar certo o derreter dos sentidos,
O esparramar-se das carnes,
O melindre do verbo.

Concupiscências
São o tremular das folhas secas quebrando nos pés,
Suor de tinta que envelhece seca,
Harpa cansada de ser brinquedo,
Adorno nos lábios de mulher boa.
Meu apetite jejua, testemunha colapso d’esperança séria,
Despedaça minha sedução.
Meu enigma é enxergar o sol de quem vive à sombra.



CONFISSÃO

Eu não creio em sonhos”

                        José de Anchieta


Eu creio em sonhos, Padre.
Rezo o Credo olhando pras telhas,
E lá mesmo fico.
Sou matéria barro de querer impossibilidades,
Trago um marido debaixo das saias,
Um marido alado, azul, lindo!
Quando quero, ele bate as asas
E apaga incêndio - é um anjo de luzes!
Meus ofertórios matinais são dele.
Amantes me cercam de ofícios:
Toadas à janela, flores a cada dia, alianças e promessas,
E um eu-te-amo em cada beijo, muitos os são.
Não digo mais porque não posso, é pecado!

Eu creio em sonhos, Padre!
Vede que sou feliz.
Meu noivo nem sabe da minha espera,
Habita águas claras, rios pequenos, conchas.
À noite eu vôo,
Visito cidades, beijo velhos desconhecidos,
E amanheço nua de tantas vontades.
Eu creio em sonhos, sim!
Amém!




DESCONFIANÇA


Tenho desconfiança daquele que me ama.
Acho amor ato nobre, legado a poucos,
Tarefa de dignos,
Algo assim, de difícil acesso.
Desconfio de quem dorme ao meu lado todos os dias,
Daquele que sabe meus ares fétidos, minha languidez,
Daquele que colhe o melhor das minhas magias
De maga cansada de ser,
Daquele que sabe todas as influências malditas do meu signo.
Cansei-me de esperas vãs
Mas ainda rogo milagres de reconhecimento.
Não quero envelhecer de vez as carnes,
Nem perecer quieta num canto isolado da minha ilha.
O meu namorado às vezes é cego; noutras, sagaz.
E eu, mulher, tentada a maldizê-lo sempre,
Tamanho é o meu querer,
Precipito-me em despenhadeiros em busca de água fria,
Pois que fervo lavas,
Pois que de labaredas dramáticas tenho feito existência.
Fujo ao controle dos urubus, das vespas.
O meu voo é incompleto e pressuroso, atabalhoado.
Desconfiança tenho dos honestos demais,
E das santas, dos castos, dos bondosos.
Desconfio daquela, diante dos meus olhos, ao espelho,
Dos seus intentos de artista, das suas vísceras dilaceradas,
Do seu talento incapaz de erguer-se em fala,
Daquela mulher furtiva, incapaz de dizer-me caminhos,
Enquanto desodoro as axilas, ajeito o cabelo,
Desamasso a roupa e miro em mim cumplicidade.



AFUNDO OS MEUS NAVIOS  


Olhando o quanto sou fogueira de velas muitas.
Marca na testa é sinal de deusa Musa.
Limpo o chão da casa dos meus súditos,
Colho as ervas finas do dia,
Ancoro repolhos no molho branco,
E digo não, quando quero.
Ademais, quem disse que eu presto?
Protesto demais pra uma coisa fêmea,
Memória me diz:
Lugar de mulher é no silêncio,
Tormentas, é homem quem sofre.
Estou em cada comboio de gente que busca alento em lugar,
Arreio, em comarcas, o meu assombro
Dessa lida de malas abarrotadas de pedras.
Minha mãe nem sabe da mesma sina.
Vontade sinto de cortar caminhos
Por onde passa esse rio vermelho.
Cansei-me, há muito, de ser,
Só trago continuísmos de lesmas.
Recuso-me a dormir calada,
Alada, voaria até o sol para derreter-me as asas.

  

ESTOU POBRE


Estou pobre.
Tardes serão sempre possíveis.
Amarei lavradores, garimpeiros?
Os versos estão secando no pé
E uma gravidez, sem filhos, provoca-me enjôos, solidões.
Estou grávida demais para o tamanho da folha em branco,
Para todas as penitências que virão com o novo parto,
Para os navios que cruzarão meus horizontes - sempre ávidos,
Para o meu lado obscuro, latinizado,
Sempre buscando pistas dos etruscos,
Dos bascos, das penínsulas, dos bárbaros, do Lácio,
De onde veio minha língua arguta, minha palavra eva.
A tarde passa e uma voz emudece:
Será perdida no vácuo habitável do entendimento.
Adiante o sol, poeira do dia, o lixo de cada casa,
A varanda que desaparece na quermesse urbana.
Estou pobre de esperas.
Os cofrinhos de porcos alegres e as casinhas da poupança
Ficaram na infância e serviram pra nada.
Sou dada à poesia e desaprendi qualquer lição de sucesso,
Veja minhas economias:
Penso nos adjetivos, nos mestres, nas vírgulas,
Guardo vocábulos arcaicos pra uso futuro,
Escolho novas cascas para o meu eu sáfico,
E a única safra que espero é a poética.
A garrafa não veio com o mar, por isso morro: náufraga.
Perdi um dente essencial ao meu sorriso,
Por isso não rio mais, não faço de simpatias pra mais ninguém,
Não demonstro satisfações, nem lamentos,
Nem ironias tenho mais, nem boca exibo.
Faço sorriso somente por dentro,
Quando filho novo nasce, enche a folha, mexe por dentro,
Sacode tempestade e eu, pobre, viro dona de palácios,
E fico toda avigorada.





Rita Santana é professora, atriz e escritora. Em 2004 publica Tramela (contos) - prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Em 2006 publica Tratado das Veias  (poemas) através do Selo Letras da Bahia, e em 2012 lança Alforrias (poemas). Como atriz, tem experiências em teatro, cinema e televisão.

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