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Ilustração: Gary L Hart, Jr |
I.
Sobre a mesa empoeirada, entre os vinis de uma outra era, o aparelho fotográfico que logo não lhe pertencerá. Desde o telhado, o tintilar das primeiras gotas de chuva vem perturbar o tom esverdeado da água da piscina.
Na cabeceira da cama, o cinza das nuvens se confunde com os reflexos sobre as lentes do aparelho fotográfico. Este cômodo nunca esteve tão escuro. Atrás da cortina, a sombra de um pendulo balança lentamente.
“O aparelho fotográfico não me pertence mais.” – diz ele. De forma repetitiva, o tom amarelado proveniente do abajur domina o branco das paredes. O movimento incessante da casa ressoa pelos corredores graças aos passos cadenciados da empregada doméstica, junto à ela, o odor traiçoeiro do jantar sobe ao quarto. A luz se perde no céu cada vez mais cinzento. O cão gordo demais para se mover, repousa próximo à rede, na varanda do jardim. A chuva nada pode com a sujeira da piscina.
Ritmado pelas gotas pesadas e pelo forte vento, o cão volta à sala. Ao vê-lo, pensaria num móvel, um apoia-pés: mais um objeto da casa. As lentes importadas, foram trazidas de uma outra América. Talvez, suas lentes ainda guardem os reflexos do concreto cinzento. “As lentes logo não terão mais nenhum uso para mim.” – diz ele. E as nuvens, cada vez mais próximas do telhado... esta casa nunca esteve tão escura. Ele abana as mãos sobre as lentes, como se os reflexos cinzentos fossem partir.
Um barulho de motor. Desde o quarto é possível ouvir os carros entrarem na garagem. “Alguém chegou?” – pergunta ele. O odor do jantar fica cada vez mais forte, parece que os alimentos ao cozinharem evaporam-se e colam-se às paredes do quarto. Ele vê seu próprio rosto na tela negra do computador, ocupada antigamente pelos “desenhos” do alfabeto cirílico. No espelho, a imagem do aparelho fotográfico, rodeada de uma aura rósea e tremula: o crepúsculo também foi captado pelas lentes sobre o criado-mudo. “Nada mais poderei capturar com o aparelho fotográfico”.
As paredes suam e sobre as tabuas de madeira que recobrem o solo pingam as gotas aos odores de frango, de arroz e de feijão. “Será que eles já chegaram?” – pergunta ele. As mãos tremulas acariciam o aparelho fotográfico. “Ele não servirá mais?”.
As antigas garrafas, antes repletas de “espíritos”, foram todas retiradas da casa. Agora ele já pode ver seu reflexo no espelho atrás do bar, previamente escondido pelas diferentes marcas de whisky. O cão caminha indiferente em direção à cozinha, talvez atraído pelo odor da comida, talvez pela presença de alguém? As sombras confundem-se ainda mais com a coloração negra de seus pelos. “Há alguém na cozinha?”.
Do malte das garrafas resta apenas a coloração do mogno. Em todo caso, ele era o único tocado por essas cores, a liquidez dos licores o seguiam onde quer que fosse, taciturnamente e discretamente. Os espíritos tem suas próprias maneiras de aparecer e desaparecer. Farejando os pés da mesa e das cadeiras, o cão aproxima-se do bar. Deita-se sobre o tapete amarelado, abanando o rabo freneticamente. A sala inteira fede.
Amarrada ao seu pescoço, o aparelho fotográfico balança segundo o ondular de seu tórax. Tremores, vibrações e ecos dentro de seu peito: a maquina vibra ao toque da pele. A origem dos movimentos é difusa. As palpitações correm por toda a superfície do plástico e as sombras partem das lentes e projetam-se sobre as paredes da sala. O dançar das imagens se faz cada vez mais rápido e difuso.
Ricardo Lindenberg nasceu em São Paulo no ano de 1985. Bacharel e Mestre em Filosofia e Letras Clássicas pela Universidade de Paris, mora atualmente em Kiev (Ucrânia) onde ensina filosofia no Liceu Francês de Kiev. Atua igualmente como professor de língua portuguesa na Universidade Nacional de Kiev (Taras Shevchenko). Tendo morado em diferentes países, Estados-Unidos, França e Ucrânia, tem um grande interesse pelas línguas e pela possibilidade de fazer com que as culturas dialoguem. Além da paixão pela filosofia clássica, tem grande interesse pela poesia de Iessienin, de Blok e de Tsvetáyeva, assim como pelos autores franceses do “Nouveau Roman”.
Endereço eletrônico: ricardo.lindenberg@yandex.com