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SOBRE O LIVRO MISTRAIS, DE ANNA APOLINÁRIO

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Man Ray, Noire et Blanche (1926).



sobre O LIVRO Mistrais, DE Anna Apolinário

Ildefonso Alves de Carvalho Filho


Poesia cortante, laminosa, carregada de ode ao universo feminino, do qual emergem referências a deusas de mitologias variadas. Paralelo a isso, percebem-se alusões às deusas-pagãs da literatura: Sylvia Plath, Cecília Meireles, Emily Dickinson; todas estão lá, embaladas pelo estilo próprio, de sonoridade gutural e melodiosa da escritora. O corpo feminino é retratado em todo seu esplendor, dançando liricamente junto com as palavras, se contorcendo num beco escuro / atirando paredes contra os soluços. Visto desse modo, o corpo feminino transcende seu aspecto material, adquire uma carga de misticismo, verdadeira “corpoesia”. É como se a dança das palavras - com asas ritmadas, flutuando como ninfas, expressasse o próprio desejo de libertação do feminino, de valorização da expressão do seu corpo. É impossível não ser contagiado pela ‘dança vocabular’ presente na sonoridade de “Selene”, para ficar somente em um exemplo:

Sou lua cheia
Dançando entre ninfas
Um grito minguante
Excitando marés

Nua e nova
Rujo ao orbe
Fênix crescente
Relampejo lírios 

Nesse poema, é bastante visível a busca frenética por uma plena liberdade paguniana, por via da expressão corporal e sensorial femininas. É a arte poética a serviço da libertação, não do servilismo. Libertação aqui entendida não só como do corpo, mas, principalmente, da alma; corte profundo nas amarras ideológicas que atravessam gerações. Lírica que almeja a expansão das sensações e diz não à conformidade inodora. A autora brinca e, assim, subverte a representação tão recorrente na tradição cristã ocidental de ver o corpo feminino como fonte de pecado.

A presença de forte cunho metapoético também caracteriza a obra da poetisa: há constantes reflexões sobre a função da poesia e seu próprio fazer poético. A construção artística e o desejo de se autoexpressar é material permanente na temática da escritora. Ela é feita, quase sempre, através de imagens concretas, associando o fazer poético a objetos do nosso cotidiano. Somos instados a realizar o fazer poético não como algo inalcançável, num céu platônico, mas como produzido com a mesma “argila” que compõe nosso dia a dia. Porém, mostrando novos ângulos e moldando novas formas com esse material. O melhor exemplo dessa temática é o poema “Selvática”, no qual o lirismo é definido como alvo metafísico a ser atingido no cerne, com sabre ou punhal.

Morder a polpa da palavra
Violentar o verbo

Açoite
Até que o rubro escoe

Atingir o cerne
Com sabre, punhal

Lacerar o arco e a lira
Alvo metafísico

Colisão cáustica
Matilha sádica

Eu quero o aborto
Da aurora boreal

Imagens hiperbólicas também fazem parte do repertório da autora: sentimentos são expandidos, o distante torna-se tangível, o inexplicável ganha palavras. Dentro dessa gama de possibilidades imagéticas, sentimentos como o Amor e a Saudade não poderiam ficar de fora. É o caso emblemático do poema “Signo”:

Coração: amuleto de constelar abismos
Miríade implodida no tambor de ilusões
Palidez sangrada no papel
Ruído oceânicoda Saudade

Buscar o cerne das coisas, ir para além do senso comum das aparências, mostrar o inaudito, deixar de lado o pragmatismo mecânico de nossa existência cotidiana; desvelar a essência escondida sob o manto cinzento da reificação dominante; eis uma tarefa sempre constante no fazer poético, fonte inesgotável de temas para o talento lírico despontar. Anna Apolinário consegue isso do seu jeito singular no livro, deixando claras suas influências, porém, sem abdicar de marcar posição e mostrar nuances que só sua poesia consegue capturar.

Dona de uma verve artística iconoclasta e, até certo ponto, subversiva, sua poesia não deixa de ser, ao mesmo tempo, madura, consolidada, fruto de um trabalho meticuloso com a linguagem. As palavras e a sonoridade são lapidadas com afinco, até ficar no ponto de precisão desejado. Há a consciência de que poesia é expressão criadora mediada por uma linguagem trabalhada, não meramente um amontoado de palavras desconexas. Sangue, suor e lágrimas são ingrediente presentes, de mãos dadas com a criatividade e sensibilidade, na composição de Mistrais. A par de tudo isso, só nos resta reconhecer que a poetisa é uma grata surpresa a surgir no cenário literário paraibano. E, fazendo eco ao mantra implícito em toda a obra: viva a poesia, viva a liberdade criadora!




Ildefonso Alves de Carvalho Filho
- 30 anos, paraibano, graduado em Letras pela UFPB, pós-graduando em Literatura.









Anna Apolinário
- nascida em 28 de julho de 1986, é natural de João Pessoa, Paraíba. Publicou os livros Solfejo de Eros (CBJE, 2010, poesia) e Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos, Edições Funesc, 2014, poesia). 



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