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O Corpo Nulo - Lorena Miranda Cutlak

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Ilustração: Michael Magin



Exórdio

Há mais que chama na clareira
onde os outonos se consomem;
em todo fogo há primavera,
o fim que vem não é do fogo.

Há mais que chama ao seu encontro
quando entre cinzas degenera
uma carcaça que era um corpo;
algo que inflama e persevera

nesse convite um tanto aflito.
Meu Deus, se tudo é infinito,
deve perecer a matéria,

seus pontos de dor consumindo
como fogo pelas artérias?
Os caminhos do teu batismo.



Corolário

Deixar que o corpo perca suas vantagens
como antes tu perdias a cabeça;
matar de fome as queixas implacáveis
com que premia a boca que o alimenta.

E perceber a cada fim de tarde
como a alma neste corpo nu se agita,
como é estranho assim desembainhar-se
e tomar entre as mãos a própria angústia

maciça o torso cru , desimpedida;
e ali reencontrar a própria face.

Ilustração: Michael Magin


Domingo

“Não é fogo legítimo essa chama,
como é falso e forjado aquele mármore;
o que brilha no altar é luz de lâmpada; 

não se sabem os frutos pela árvore?”
É o que penso, diante da coluna
de cimento, pintada como mármore, 

sustentando, entre outras, a fortuna
espiritual nos vácuos dessa igreja.
Ver as coisas de Deus em forma humana,

tantas fachadas, ritos  não que seja
má em si a presença do sensível
germinando entre o bem que a alma enseja,

e também, de que modo, que intangível
entidade oferece-se a que entenda-a
a humana razão, sem a carne viva

de algo como esta igreja? Esta tenda,
circundada de espinhos e deserto,
fosse ela só espírito, a contenda

por que veio sofrer seria um incerto
jogo de luz e sombra, nulo aos homens.
Vejo aqui deste banco bem de perto

como é frágil a estrutura, como somem
ofuscados por cores e tamanhos
os dois olhos de Deus, sem cor, que luzem.

Ou talvez são os meus que, em meio ao sonho
impregnante do mundo como ideia,
não conseguem senão ver quanto é estranho

ter a carne do eterno entregue em ceia
à manada inclemente, que tem fome
de sofrer e que sofre nessa teia

asquerosa, sem mal saber-Lhe o nome.
É hora da comunhão, que longa fila,
pedem as almas sofridas que Ele as dome.

Eu não vou até lá. Não estou tranquila,
ou serena que possa receber
em meu corpo este Corpo. Se vacila

minha fé, é que os olhos sabem ver
melhor que o coração sabe entregar
suas correntes à redenção no Ser.

E, no entanto, percebo quanto há
de amor puro, de pura expectação
nessas faces cansadas que Ele dá
à luz, não porque saibam de antemão
compreender o mistério que as consome,
mas por somente ansiarem a exaustão

no calor dessa luz, que aos olhos some.



Primavera
Our tears well from a love
We have never outgrown; our cities predict
More than we hope; even our armies
Have to express our need of forgiveness.

 W. H. Auden



Ouvi dizer que a primavera pune;
não soube o que pensar da estranha ideia.
Julguei que o pensador negava o lume
tão natural a esse elo na cadeia
que as estações circulam.

Mas como conceber que a luz da aurora
(essencialmente igual à primavera)
punisse, castigasse, envolta em treva
nas sendas de seus raios calorosos?
Estranha, estranha ideia!

Mais tarde tristemente entendi como.
Não sendo a primavera mais que o esforço
da terra, dolorido, para doar-se
de volta à fonte que, se ela enxergasse,
não haveria esforço;

e se tudo o que nasce vem da espera
pelo que justifique a dor do parto,
é que não há nascer sem que a quimera
do sofrimento venha a entranhar-se
na carne do que é doce

e aparentava a paz mais sem disfarce.
No entanto, a primavera, se é tormenta,
sendo também a morte que renasce,
por que chamar castigo ao que ela ostenta
quando nos fere a face?

Talvez somente o mal inevitável
a deitar sombra sobre o que é sensível,
tornando impuro o que mãos não tocaram,
é que se deixa sentir na vertigem
dessa união de contrários?

Não; punição é como há de chamar-se,
para lembrar a origem dessa queda
e que ela vive em ti como se andasses
tateando uma ilusão com as mãos atadas,
completamente às cegas.

Não fosse a luminosa contraparte
presente mesmo em formas imperfeitas
como tu; não fosse desabrocharem
a cada dia, junto aos teus pesares,
as pétalas e o néctar,



O Touro Contra a Morte

Touro louríssimo, teu torso
forjado à força de antiquíssimas
batalhas sem ouro vencidas
vem dissolver-se nas pupilas
com que fulminas, sem esforço,
pedra selvagem e estrela fria.

Com sempre mansa maestria
de quem não mede a própria força,
pois que de si mesmo deposto
para melhor legar-se à lida,
teu passo é torto à revelia
da paz que emana de teu rosto.

Segues em frente, e em frente, e após
tua marcha zonza e imperativa
eis que desponto, a persegui-la,
sombra no rastro de um sol: touro,
tu que me arrastas pela vida,
que houve entre a noite e o nosso encontro?

As madrugadas mal cabiam
dentro do vão da minha fome,
eram chacinas repetidas,
todas idênticas, e o corvo
de uma Lenora mais antiga
vinha pontuá-las com o agouro

de seu “Não mais”, e eram sozinhas
as minhas lágrimas de assombro.
Eu não sabia que tu vinhas,
ponto de luz sobre o horizonte,
e às vezes dava por perdida
essa batalha contra a foice

de um desespero que trucida.
Touro de luz, forma de amor
a um tempo íntima e inaudita,
tu, a caminhar como caminhas,
com a retidão dos homens sós,
soubeste ver nas entrelinhas

do desencanto o meu melhor,
espécie de novo batismo
dentro das águas de teus olhos
místicos, límpidos: teus olhos
lançando, em busca de um destino,
sua chama em torno  são meus sóis.

Touro louríssimo, antiquíssimo,
esse céu triste, que revolves
em teu sonho sôfrego, habita
também as mágoas de meu corpo 
é o mesmo céu que, enfim, nos liga 
pelo tendão da angústia, exposto.



Lorena Miranda Cutlak nasceu em Belém-PA, em 1988. Mora em São Paulo desde 2006, onde obteve graduação e mestrado em Letras pela USP, com dissertação sobre o pensamento político do romancista Fiódor Dostoiévski. Publicou seu primeiro livro de poemas, O Corpo Nulo, em novembro de 2015, pela editora Mondrongo.

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