A poesia brasileira contemporânea tem sido, com mais frequência que o desejável, um pouco complacente. Às vezes é como se a liberdade que recebemos como herança da vanguarda modernista seja confundida com falta de rigor e ausência de método. É comum vermos ora sentimentos íntimos jogados quase a esmo numa página, ora a esterilidade de jogos de palavras ocos, que não nos levam – a nós, os leitores, a nada. Posso parecer meio conservador, mas ainda acredito que o poema tem que, ao mesmo tempo, comover o espírito e impressionar o cérebro; que forma e conteúdo não são instâncias estanques; que lirismo fácil pode funcionar bem em hino de time de futebol, mas que a poesia pede mais.
E se tem uma coisa que a poesia de Alexandre Guarnieri (que vem se destacando como uma voz absolutamente original) não é, é complacente.
O livro anterior de Alexandre, Casa das Máquinas, já havia me passado a impressão de rara combinação entre ousadia e rigor. Ousadia arquitetônica, rigor na engenharia. Cheguei a dizer a ele que o livro quase exalava o cheiro e os ruídos e odores das velhas fábricas, especialmente os odores: aquela mistura meio azeda, meio amarga, do cheirode graxa, de solventes, de combustíveis, de máquinas enferrujando, de teto com goteiras e poças d’água empoçada no chão. Aquele livro lembrava Tarkovsky, lembrava Chernobyl...
E agora tenho em mãos este Corpo de Festim. A linha é a mesma. Um volume que não é coletânea de poemas (embora eles possam ser lidos separadamente), mas um conjunto: ao começar a folheá-lo, a sensação de unidade é a primeira que temos. Mas onde, no livro anterior, o que marcava era a crueza dos maquinários, aqui o que nos invade são os cheiros, os fluídos, as dores e os processos todos dos corpos humanos. Na melhor tradição das Waste Lands de Eliot, o lirismo está presente aqui, mas não vem fácil; precisa do cérebro. Os poemas exigem concentração: não são para serem lidos no elevador. Dão trabalho, requerem esforço. Mas a recompensa para o leitor é enorme. O livro abre com os átomos de carbono e vai num crescendo, corpo adentro, a até se encerrar na “mandala de houdini”. E então, fechado o volume, e antes que tudo possa D E S A P A R E C E R DE UMA VEZ, o que mais fica (pelo menos para mim), são os cheiros, principalmente o cheiro grudento e amargo do mais importante dos fluídos humanos, o sangue.
André Caramuru Aubert
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André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo no longínquo ano de 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios e o livro de poemas Outubro/Dezembro, pela editora Patuá.