para marte
ei, amor, vamos ganhar na mega-sena e sair por aí sem pensar no amanhã?
ontem não podíamos nada além de nos preocupar com a conta do gás e agora poderemos sonhar e dar nossa opinião.
ou será que já fomos condenados a engrossar o coro dos apedrejadores?
tomara que não! tomara que não!
sem dever nada pra ninguém, uma pessoa é uma pessoa.
no parque de manhã é tão feliz quanto o seu cão.
mesmo assim seria prudente rirmos só de olhos fechados.
não somos insensíveis à paisagem dos desastres alheios.
os vizinhos vão estranhar quando não quisermos competir com seus jardins.
ei, bebê, somos independentes agora?
o tissunami não inunda nossa fortificação?
vou me preocupar em tomar antídotos contra a indiferença.
anote isso.
em santa tereza em 1970 os ricos jogavam dinheiro para os pobres da janela.
em 2020 quem sabe se haverá janelas.
o sol pode não ser mais saudável, nem o trigo nem os exercícios mentais.
mas ainda há pequenas brechas para a transformação.
sabe, meu bem, o que é amar?
nós teremos tempo de aprender.
podíamos reivindicar o quinhão nunca pago da felicidade prometida,
com advogados contratados da união.
mas deixa pra lá.
temos o bastante para ignorar os sangue-sugas.
e o perdão fica mais doce há onze mil metros de altitude e dentro do avião que nos leva pra bem longe.
não pouse ainda, piloto, em bangladesh há muita fome.
avante, piloto, que estão em guerra no deserto.
e é melhor evitar os radares. e as tempestades. e os turistas.
olha, a água dos icebergs já inunda a austrália.
olha, o comboio dos refugiados.
como é bom estar na primeira classe.
urubus também fazem a digestão dando voltas no ar.
só desceremos nos tempos amenos.
- que tempos amenos? você, meu bem, me pergunta.
- armaram as crianças até os dentes de leite!
- os passarinhos acordam às três da manhã!
mas ganhamos, xuxu, na mega-sena.
somos livres.
se não aqui, em alguma parte.
afinal, o mundo não é tudo no mundo.
logo logo lotearão a lua e parece que já está na planta um incrível condomínio em marte.
Cláudia Maria de Vasconcellos
São Paulo, 2015