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Rainha Mãe - Antonio Aílton

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O prisioneiro


Preso, Bob não pode defender sua ração dos ratos. Bob esgota sua paciência e não fode mais cadelas há muito tempo. Apenas se lambe furtivo e ganido, na solitude amarga das pulgas. Os gatos vêm rir de Bob: de dia, tomam sol e se lambem no telhado baixo para o qual Bob salta raivoso, sem os alcançar para o estraçalho; de noite se lambem no telhado de Bob, e Bob apenas pressente a rinha malévola. Olham Bob e se espicham, fingem que se armam, que caçam os ratos que roubam a ração de Bob. “Bob, velho cão sonolento, puah”. Bob não lê livros ou revistas, não assiste a televisão, não canta, não toma sol. Bob não é um cão depressivo, mas se pergunta o que é tão mais importante que um pedaço de carne, o que poderia ser tão mais importante que a liberdade, que foder, por exemplo (claro que ele é um animal e só conhece esta palavra. Também lembra das velhas revistas em inglês fuck yes); o que seria mais importante que até mesmo brincar como as crianças fazem se espojando na areia. Bob provavelmente morrerá dentro de alguns dias enquanto alguns homens argumentariam e contra-argumentariam sobre a condição de Bob de ser Cão. Enquanto Cão geral, claro, sobre sua possível existência ou inexistência no universo empírico, ou enquanto “objeto teórico formalmente situado”, e sua possível formulação. A tese: “Bob, cão sem fronteiras”.




Cadeira de balanço


Os bichanos vêm aprender comigo
o conceito de falta de dinheiro
eles ficam ali sobre a velha cadeira
e se espicham, até dormirem
entediados
com o que tenho a dizer

tosse,
tosse
e

cuspe





Escritos aleatórios para máscaras
e incertezas


      Flor é a palavra flor, não por dizer, mas por silenciar

Flor é o crisântemo aceso, aguardando com ansiedade
a visitante tardia

Flor é Bicho de Lígia Clark, quando você toca
e ele se abre

Flor é a orelha decepada de tuas obsessões psicossexuais
            derramando girassóis no ocaso para espantar os
            últimos corvos
(há sempre relações possíveis entre flores e navalhas)

Flor: rã de Patrick Süssekind na vulvinha virgem da próxima vítima
     engolindo insetos e aspirando o hálito ainda quente de um
perfume desconhecido

Há flores que nascem no estrume das feiras-livres de Paris

Mas não exagere em arte conceitual, chá de papoula é
natureza morta
pintada de amarelo




Rainha-mãe


Antes de acordarem para sonhos perturbadores
a rainha-mãe, oleira balofa
já os havia transformado em macilentos cupins
cuspindo e cagando 7, talvez 14 bilhões
de vorazes e pestilentos consumidores
de soldados rasos a coronéis de asa-casaca,
capazes
de perder a graça e vociferar na noite insana: vão!
comam sua mãe! E cada um repete em seu incesto
o pesadelo autofágico da borracha a que se acomodaram
 chamar
ciclo da vida




Homenagem à mulher que disse
“bom dia”


quase que o bom dia ecoou pelas ruas
e destravava a garganta de todos

mas a van, porra dava sacudidelas
e os olhos alternativos dos passageiros
encaixotavam um som abafado

a ciclista passou com o sol nas costas
enquanto pets e lixo fumegavam sidra maçãs

“Bom Dia!”

a eternidade sopra farpas
crianças são pombos e porcos

na manhã sem papilas
ouvi berros
e girassóis



Suco de nô e kabuki


minhas mãos seguram o suco de laranja
nos lapsos da tarde garotos jogam bola
entre a avenida e o mar
  faces contraditórias de uma mesma complexidade
entorno meu copo meu suco de laranja
poeira e
vitamina c
o carbono 14
guarda a idade que eu tenho do universo
transmudam-se meus olhos ao sol
nada impede que também fluamos
para o desejo
e
para o reflexo
vejo navios imóveis
embriagados de morte na distância
os mundos
exalam sempre grandeza e desamparo

(seria inverossímil pensar no universo nesta hora de rush mas
lembre-se: estou apenas tomando meu suco de laranja)

o sol desta cena exige o sangue melodramático
de um teatro japonês
contudo
estou doce e efêmero
tomo calmamente meu suco de laranja
opto por ser derramado como resquício – sem agonia
como quem não deve nada nem nada teme
destas esplêndidas cortinas
vermelhas
(azuis?)
porque ainda é preciso voltar para casa
deixo duas moedas
no balcão
do crepúsculo



Ilustrações: Gilad Benari




Antonio Aílton integra os meios culturais e literários de São Luís (MA) e atualmente tece pontes São Luís-Recife. Poeta, professor e pesquisador da poesia brasileira contemporânea, cursa Doutorado em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Publicou os livros Os dias perambulados & outros tortos girassóis ( Fundaçãode Cultura Cidade do Recife, 2008)os livros As Habitações do Minotauro (Poesia – Fundação Cultural de São Luís, 2001), Humanologia do eterno empenho (Ensaio – Fundação Cultural de São Luís, 2003) e acaba de publicar Compulsão Agridoce (Paco Editorial, 2015).

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