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2 contos de Bruno Bandido

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Ilustração: Justyna Czujko

Nua ao piano

Sonhei que você tocava piano pelada. Eu não sei se a música era ruim ou você não era boa. Com seus dedos rígidos, fugindo do tempo. Sei que era brega, você ali, pelada tocando piano. Não dava pra ser bonito - era como assistir aquele filme xarope do Led Zeppelin no DVD. Então eu acordei. Fui no banheiro lavar meu rosto e só na volta é que eu te vi na cama. Eu sabia que você tava nela. Eu só não tinha ligado pra isso ainda. Aí eu liguei a luz. Você acordou reclamando. Você não deve se lembrar. Mas você acordou. Atendi seu pedido e deitei ao seu lado de novo, no escuro. Então eu sonhei que a gente casava e tinha um filho, não sei se adotado ou sei lá, mas a gente o criava no campo e ele corria pelado pela grama, brincando com as galinhas e gansos e cavalos, sujo de lama, como um pequeno selvagem. Sabe, eu andava cansada antes disso tudo. Eu nem lembrava mais dos meus sonhos. Pensando bem, eu quero que minha dor continue, que meu rosto siga roxo pra sempre com esses hematomas estúpidos e que minhas olheiras sigam crescendo até chegar na minha boca - como uma prova eterna - você olhando nos meus olhos e sabendo que me salvou.



Xavier de Maistre

Teresa sempre lia Viagem em Volta do Meu Quarto. Ela ficava me repetindo um trecho explicativo sobre as cores da cama. Algo nisso fascinava aquela vadia de olhos tristes que ainda pensava em matar os pais e se divertia comendo hot dogs. Não era muito carinhosa comigo, o que era bom, mas tinha afeto de sobra pra dar ao nosso cachorro cruza com pitbull que resgatei de um saco de lixo no Guaíba. Ela deu o nome de Xavier a ele e eu e ele somos velhos amigos agora. Nas noites de chuva, quando meus joelhos doem, Xavi ainda corre pra porta ao ouvir qualquer barulho no lado de fora, e ela nunca abre, então volta resignado e eu despejo um pouco da minha cerveja no chão. “O seu cachorro fede a cerveja, uma garota me disse esses dias. Era uma garota de programa, é claro. “É que às vezes ele se esfrega no chão antes de lamber”, eu disse e tratei de demonstrar virando um pouco a latinha. Xavier pulou da cama e fez o seu show. Ela não pareceu gostar da nossa exibição. Outras garotas já viram e riram comigo, eu sempre me divirto, é infalível, mas essa não, ficou me olhando com uma cara de pena. Tentou acariciar meu rosto e empurrei a coitada - foi no reflexo, mas mesmo assim me senti mal. Xavi começou a latir, dei a grana pra ela e disse que podia ir embora. Eram três da manhã, parecia uma hora tranquila pra gente passear lá fora. Uma jovem de cabelos negros tava andando sozinha e, de costas, lembrava Teresa. A seguimos por um bom tempo até ela conseguir a droga de um táxi. Elas sempre conseguem. Quando Teresa se foi, não soube dizer bem o motivo. Ela tentou, só que não conseguiu. Devia ser isso que tanto admirava na porra daquele conto afinal. A capacidade. Pelo menos foi o que pensei, às quatro da manhã, com nosso velho cachorro na rua. Um casal de bêbados parou pra brincar com ele. “Qual o nome?”, a menina perguntou. “Hitler”, eu disse. E eles foram embora depressa.  




Bruno Bandido nasceu em 1990, na fronteira com o Uruguai, hoje mora na Bahia com sua mulher e mais dois vira-latas. Em 2014, lançou o livro de contos Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro pela editora Bartlebee. De vez em quando, ainda alimenta o blog brunobandido.wordpress.com.

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